Podemos citar exemplos soltos, e recentes, de alguns grandes acontecimentos culturais:
— o filme de David Fincher sobre o Facebook;
— o novo livro de Pedro Tamen;
— a passagem de uma obra de Luciano Berio na Gulbenkian.
Quantas horas — sublinho: horas — de debate as televisões dedicaram a tais eventos? As respostas são um imenso buraco negro... Entenda-se: não que eu defenda que se façam debates por tudo e por nada (tanto mais que o "debate" passou a ser um formato televisivo tão conservador e redutor como tantos outros). Acontece que as opções falam por si — e o exemplo que a imagem em cima ilustra é apenas um dos vários que podemos encontrar em quase todos os canais: vivemos, aliás, somos obrigados a viver numa cultura televisiva que impõe o futebol como modelo dominante de fruição, socialização e pensamento.
O texto que se segue foi publicado no Diário de Notícias (13 de Março), com o título 'A propósito das eleições no Sporting'.
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Há qualquer coisa de obsceno e, mais do que isso, ideologicamente violento no modo como certos factos adquirem uma espectacular visibilidade televisiva. Exemplo próximo: as eleições para a presidência do Sporting de Club de Portugal.
A simples nomeação de tal facto pode desencadear as formas mais degradadas de clubismo (que são muitas e muito favorecidas pelas televisões). Ora, escusado será dizer que o assunto não tem a ver com nenhum clube particular (aliás, já o referi a propósito de eventos semelhantes no Benfica ou no F.C. Porto). O que está em causa é o empolamento televisivo de um acto eleitoral secundaríssimo na hierarquia de temas candentes do nosso quotidiano.
Há aqui um valor sintomático que importa reconhecer. Decorre da importância que é conferida ao futebol no nosso sistema mediático (o que nada tem a ver com os sabores próprios de cada jogo). Assim, no mesmo país em que quase ninguém, a começar pela esmagadora maioria dos membros da nossa classe política, se atreve sequer a nomear o facto de termos actos eleitorais com cinco milhões de abstencionistas, a escolha de um presidente para um clube surge transfigurada numa epopeia que parece comprometer os destinos deste mundo e do outro.
O fenómeno ilustra uma agenda televisiva cuja discussão se tornou tabu (e, neste caso, a palavra “tabu” possui uma justificação que nada tem a ver com a sua aplicação anedótica apenas porque algum político declarou qualquer coisa do género “não digo agora, digo para a semana...”). De acordo com a lógica dessa agenda, basta um membro do governo ter a infelicidade de proferir uma frase de cinco palavras envolvendo alguma ambivalência para que, durante pelo menos uma semana, seja objecto de infinitas especulações ou insinuações. Acontece assim com a governação de José Sócrates; aconteceu assim com Pedro Santana Lopes como primeiro-ministro. Em todo o caso, os discursos futebolísticos tendem a ser tratados como um assunto inquestionável: mesmo proferindo as mais calamitosas banalidades, os presidentes ou candidatos a presidentes são tratados como a aristocracia da nossa televisão.
Em 1987, num notável filme sobre os bastidores de um canal televisivo, Broadcast News/Edição Especial, James L. Brooks formulou todas estas questões a partir da sua dimensão mais íntima: tentando compreender como os jornalistas televisivos sentem (ou não sentem) a imagem do mundo que apresentam aos seus espectadores. Com William Hurt, Holly Hunter e Albert Brooks, o filme deixava uma sugestão perturbante: a de que muitos desses jornalistas escolheram um sonambulismo deontológico que os impede de questionar os sentidos da sua própria actividade. Com uma componente que importa sublinhar: à boa maneira da tradição melodramática de Hollywood, era um filme capaz de olhar as suas desamparadas personagens com um misto de contundência e ternura.