Um livro breve e assombroso, de demorado assombro, para nos revermos e reavaliarmos na solidão dos nossos teatros — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 de Março).
No novíssimo livro de Pedro Tamen, Um Teatro às Escuras (Dom Quixote), há duas personagens centrais, “ele” e “ela”. A certa altura, ele diz: “Tocas o próprio corpo / e assim te vês. E se a luz chegar / já nem de ti mesma terás falta, / porque então me verás com recobrados olhos.” Lembrei-me das espantosas imagens de Macha Méril e Bernard Noël no filme A Mulher Casada (1964), de Jean-Luc Godard: corpos expostos na sua nudez, mas inacessíveis, como se o cineasta de Filme Socialismo (por estes dias nos ecrãs portugueses) não pudesse deixar de nos lembrar que a imagem não é uma revelação automática (Oh!, tristeza da televisão...), mas sim uma nova máscara contendo a promessa de uma revelação.
O título do livro envolve uma feliz contradição que importa sublinhar. E até, de alguma maneira, intensificar. Um Teatro às Escuras introduz-nos num universo ficcional no qual penetramos sabendo ao que vamos: artifício e sua exposição, quer dizer, verdade desse artifício. Dito de outro modo: no tempo das transparências pueris, meio mundo (aparentemente, bastante mais de meio) acredita ou quer fazer acreditar que ter algures um repórter com muitos figurantes nas suas costas a gritar para a câmara é um acto de verdade, automático e indiscutível. Pode ser na Praça Tahrir ou à porta de um qualquer estádio de futebol: para o dispositivo televisivo, um berro nunca é uma garganta humana em esforço, mas uma prova irrefutável de excelência cognitiva. Não admira que cada vez saibamos menos. E que haja pelo menos duas gerações educadas para pensar que o 25 de Abril são uns tanques a passar na rua com muita gente a correr ao lado. E a berrar, claro!
Para mais, o teatro de Pedro Tamen [foto] está “às escuras”. Nele somos impelidos à delicadeza do tacto ou, no mínimo, à luminosa presença da palavra. Não simplifiquemos, por isso: na sua austera meia centena de páginas, Um Teatro às Escuras é um manifesto do nosso presente, e para o nosso presente, revalorizando a arte do dizer e do escrever para além de qualquer instrumentalização mediática. Cito pacientemente, apelando à inteligência do leitor: “Nenhum de nós dirá o que restar / deste tempo de negas e de pó / e outro tempo de calmas e de mel / nos tornará reais sem as guaritas / que nos protegiam noutras eras: / apanharemos chuva e sol deveras.”
Livro de poesia? Evidentemente. E de celebração teatral. E de melancolia cinematográfica. Livro, sobretudo, de resistência à banalidade da fala e à formatação dos discursos. Agora, nas televisões, instalou-se mesmo uma estupidez retórica que faz com que seja chique começar muitas frases pelo infinito: “dizer que”, “lembrar que”, “acrescentar que”. Ninguém se atreve a avançar com um humilde “eu digo que” ou “eu quero dizer que”. Triunfou a prece enunciada num outro filme de Godard: “Dêem-nos a televisão, e um automóvel, e libertem-nos da liberdade”.
A Mulher Casada (1964), de Jean-Luc Godard |