domingo, fevereiro 14, 2010

José Sócrates, o presumível culpado

GIOVANNI BELLINI
Apresentação no Templo
1460-64

1. Por estes dias de escutas, denúncias e difamações, o pior jornalismo português está a vencer em toda a linha, degradando o espaço público, porventura de forma irreversível.

2. Através das suspeitas e insinuações lançadas contra o primeiro-ministro José Sócrates, esse jornalismo conseguiu anular a presunção de inocência, uma das conquistas históricas da lei e dos tribunais. Entrámos na época em que só há dois tipos de cidadãos: os anjos sem sexo, politicamente virginais, e os presumíveis culpados.

3. Quase ninguém quer discutir a gravidade desta conjuntura. Perante o vazio de pensamento gerado pelas demagogias mediáticas, por vezes o sarcasmo parece ser a única maneira de resistir aos ataques à inteligência de cada cidadão. Era o que fazia Ferreira Fernandes, em salutar crónica intitulada 'O "Sol", o polvo e a conversa de chacha'. Cito o final: "Ontem, comprei o Sol. Li as quatro páginas sobre as escutas que me prometiam relatar o polvo governamental sobre jornais e televisão. Mas não estava lá nada sobre o assunto. Não quero dizer que Sócrates não quis dominar a Imprensa. Não digo que o Governo não coma microfones ao pequeno-almoço. Digo é isto: naquela edição do Sol não estava lá nada sobre o assunto. Então, do que falamos?"

4. Bem sabemos que o ambiente favorece o puro arbítrio da indigência mental. Dito de outro modo: mesmo que o primeiro-ministro possa vir a ser condenado pelos crimes mais monstruosos, nada pode fazer esquecer o modo como os valores clássicos do jornalismo estão a ser metodicamente substituídos por uma fulanização histérica e pelo atropelo dos mais básicos princípios de respeito democrático pelo(s) outro(s).

5. O clima instalado, enraizado na sinistra lógica do Big Brother, é tão favorável à estupidez política que se conseguiu por a funcionar uma incrível insinuação: todo e qualquer cidadão que exprima alguma consideração positiva sobre a área política do Governo, ou as suas personalidades, corre o risco de ser acusado de perigoso elemento anti-democrático.