1. Sócrates. Para o primeiro-ministro, a actual conjuntura política é, no mínimo, delicada. E os seus desenvolvimentos necessariamente preocupantes. Estão em jogo, não apenas a sua política e a estabilidade do seu Governo, mas também o seu estatuto de pessoa pública. Nesse aspecto, creio que Rui Hortelão toca na ferida quando, no Diário de Notícias, refere que está para durar o “poker político que se joga, actualmente, entre Governo, oposição e Presidente da República” (‘Os dois lados de um só Sócrates’).
Através desses problemas, e para além deles, compreendemos dois dados simbólicos que importa também não secundarizar: um remete para as condições sociais de enunciação da verdade; o outro tem a ver com os valores de legitimação da própria influência política.
2. A verdade. Em relação à primeira questão, temos estado a assistir a uma progressiva degradação daquelas condições. Dito de outro modo: algumas formas de colaboração (ou promiscuidade) entre poder judicial e poder jornalístico — traduzidas, por exemplo, na sucessiva divulgação de escutas —, mesmo quando possam ter lançado alguma luz sobre ocorrências graves (e ninguém o nega), têm multiplicado a degradação de qualquer padrão colectivo de verdade. Na prática, a hiper-circulação de “informações” já não gera nenhum tipo de coesão social, antes produz fragmentação, fractura e dissidência: a sociedade portuguesa já não tem, de si própria, uma imagem coerente, antes se vê (porventura concebe) como palco de uma teia de grupos em permanente guerra mediática. Escusado será relembrar que a recusa quase global da classe jornalística em pensar tais questões apenas enfraquece a sua especificidade profissional.
3. Moniz. Quanto ao segundo caso, assistimos a um episódio tragicamente revelador: assim, tivemos uma personalidade dos media, José Eduardo Moniz, a “exigir a demissão imediata de Sócrates” [imagem: 24 Horas]. O facto parece ter suscitado uma generalizada indiferença. E vale a pena questionar essa indiferença. Que um qualquer cidadão “exija” a demissão imediata seja de quem for, eis o que só poderá suscitar uma paternal ironia — não porque esse cidadão não tenha legitimidade para sustentar as suas ideias, inclusive a eventual importância da demissão de um primeiro-ministro. Em todo o caso, vale a pena perguntar quando é que a legitimidade (de opinião) pode ascender à condição de exigência (política).
Num mundo em que, tantas vezes, se aplicam paralelismos para simplificar abusivamente os problemas, esta é uma situação em que os paralelismos podem ser interessantes. Suponhamos, então, que uma figura marcante na dinâmica do nosso espaço jornalístico e mediático — por exemplo: Belmiro de Azevedo, Francisco Pinto Balsemão ou Joaquim Oliveira — vinha “exigir” a demissão do primeiro-ministro? Não é difícil imaginar a agitação que tal “escândalo” desencadearia. Que aconteceu na sociedade portuguesa para que, ao fazer exactamente isso, o vice-presidente da Ongoing, ex-director da TVI e responsável pela introdução do Big Brother na cultura audiovisual e no imaginário social do nosso país, seja encarado como um cidadão dotado de um poder moral sobre a cena política que lhe permite, por exemplo, “exigir” a demissão de um primeiro-ministro?
4. O espaço público. Em boa verdade, a dimensão moral de José Eduardo Moniz é secundaríssima neste contexto — até porque devemos acreditar que as suas mais recentes intervenções públicas, mesmo que possamos questionar a sua formulação, decorrem de um sincero e cândido interesse na resolução dos problemas graves que afectam o nosso país.
A questão de fundo envolve dois dados interligados: a decomposição simbólica da vida política junto do cidadão comum e o enfraquecimento, também simbólico (para já não dizer comercial), da percepção global do jornalismo e de algumas das suas formas de actuação, nomeadamente nas suas relações com os poderes político e judicial.
É duvidoso que qualquer terramoto político — incluindo a eventual demissão de um primeiro-ministro — possa ajudar a superar os muitos traumas resultantes de uma tão funda crise social. Entenda-se: crise de concepção e vivência do espaço público.
Através desses problemas, e para além deles, compreendemos dois dados simbólicos que importa também não secundarizar: um remete para as condições sociais de enunciação da verdade; o outro tem a ver com os valores de legitimação da própria influência política.
2. A verdade. Em relação à primeira questão, temos estado a assistir a uma progressiva degradação daquelas condições. Dito de outro modo: algumas formas de colaboração (ou promiscuidade) entre poder judicial e poder jornalístico — traduzidas, por exemplo, na sucessiva divulgação de escutas —, mesmo quando possam ter lançado alguma luz sobre ocorrências graves (e ninguém o nega), têm multiplicado a degradação de qualquer padrão colectivo de verdade. Na prática, a hiper-circulação de “informações” já não gera nenhum tipo de coesão social, antes produz fragmentação, fractura e dissidência: a sociedade portuguesa já não tem, de si própria, uma imagem coerente, antes se vê (porventura concebe) como palco de uma teia de grupos em permanente guerra mediática. Escusado será relembrar que a recusa quase global da classe jornalística em pensar tais questões apenas enfraquece a sua especificidade profissional.
3. Moniz. Quanto ao segundo caso, assistimos a um episódio tragicamente revelador: assim, tivemos uma personalidade dos media, José Eduardo Moniz, a “exigir a demissão imediata de Sócrates” [imagem: 24 Horas]. O facto parece ter suscitado uma generalizada indiferença. E vale a pena questionar essa indiferença. Que um qualquer cidadão “exija” a demissão imediata seja de quem for, eis o que só poderá suscitar uma paternal ironia — não porque esse cidadão não tenha legitimidade para sustentar as suas ideias, inclusive a eventual importância da demissão de um primeiro-ministro. Em todo o caso, vale a pena perguntar quando é que a legitimidade (de opinião) pode ascender à condição de exigência (política).
Num mundo em que, tantas vezes, se aplicam paralelismos para simplificar abusivamente os problemas, esta é uma situação em que os paralelismos podem ser interessantes. Suponhamos, então, que uma figura marcante na dinâmica do nosso espaço jornalístico e mediático — por exemplo: Belmiro de Azevedo, Francisco Pinto Balsemão ou Joaquim Oliveira — vinha “exigir” a demissão do primeiro-ministro? Não é difícil imaginar a agitação que tal “escândalo” desencadearia. Que aconteceu na sociedade portuguesa para que, ao fazer exactamente isso, o vice-presidente da Ongoing, ex-director da TVI e responsável pela introdução do Big Brother na cultura audiovisual e no imaginário social do nosso país, seja encarado como um cidadão dotado de um poder moral sobre a cena política que lhe permite, por exemplo, “exigir” a demissão de um primeiro-ministro?
4. O espaço público. Em boa verdade, a dimensão moral de José Eduardo Moniz é secundaríssima neste contexto — até porque devemos acreditar que as suas mais recentes intervenções públicas, mesmo que possamos questionar a sua formulação, decorrem de um sincero e cândido interesse na resolução dos problemas graves que afectam o nosso país.
A questão de fundo envolve dois dados interligados: a decomposição simbólica da vida política junto do cidadão comum e o enfraquecimento, também simbólico (para já não dizer comercial), da percepção global do jornalismo e de algumas das suas formas de actuação, nomeadamente nas suas relações com os poderes político e judicial.
É duvidoso que qualquer terramoto político — incluindo a eventual demissão de um primeiro-ministro — possa ajudar a superar os muitos traumas resultantes de uma tão funda crise social. Entenda-se: crise de concepção e vivência do espaço público.