sexta-feira, fevereiro 12, 2010

Portugal, versão "Big Brother"

RENÉ MAGRITTE
A Condição Humana
1935

1. Vivemos — ou querem fazer-nos viver — em plena pornografia mediática. A avalancha de golpes contra o Governo repete, sem variações significativas, apenas com ainda maior histeria, o que aconteceu visando o desempenho de Pedro Santana Lopes como primeiro-ministro. Dizer isto não significa anular um qualquer facto com qualquer outro, muito menos supor que Santana Lopes, José Sócrates ou seja quem for estão ilibados de responder e corresponder ao enquadramento legal dos cargos que ocupam ou ocuparam. Significa, isso sim, constatar um assustador estado de coisas: o espaço da comunicação social foi transformado numa câmara de eco de sugestões, insinuações e julgamentos sumários, de tal modo que os órgãos de informação que queiram resistir a tais práticas correm o risco de ser rotulados como "anti-democráticos". Tivemos, aliás, o triste episódio de Manuela Moura Guedes [video em baixo] a denunciar o estado de "censura" em que vivemos, promovendo uma pedagogia tão rudimentar que nem sequer se dá conta que, automaticamente, reduz a pó o seu próprio discurso.

2. Há uma outra maneira de descrever a actual conjuntura social (e que não se alteraria uma vírgula se Manuela Moura Guedes praticasse outro tipo de jornalismo, como não se alterará se José Sócrates for condenado a prisão perpétua): o país passou a ser gerido por uma lógica de Big Brother. Significa isso que o espaço público passou a ser comandado pela noção segundo a qual a exposição de qualquer detalhe de qualquer acontecimento envolve uma transcendência de significados que remetem sempre para alguma dicotomia purificadora ("bem/mal", "justo/injusto", "ino-cente/culpado"). Resistir, ou tentar resistir, a isso tornou-se um risco filosófico e político: os discursos dominantes — nomeadamente por efeito global das televisões e da sua ideologia populista de produção de verdade — conseguiram instalar a ideia sinistra segundo a qual essa resistência é, automaticamente, um crime de lesa democracia (é, aliás, sintomático que o mais transparente dos crimes, devidamente identificado pela Lei — a publicação das escutas —, esteja quase ausente das notícias dos últimos dias).

3. Fica uma primeira lição, também ela pedagógica, cuja evidência importa lembrar: para a "big-brotherização" do país, dos media e da política, contribuiu de forma decisiva a opção de José Eduardo Moniz em lançar o Big Brother, na TVI, como alavanca central de programação. Importa lembrá-lo, não para desencadear qualquer processo persecutório, muito menos para defender a prática da difamação: apenas porque, pelo menos por uma vez, podemos compreender onde estão as raízes ideológicas do nosso viver e, sobretudo, do nosso mal viver.