Esta entrevista com Anne Sofie von Otter realizou-se em Lisboa, a 1 de Outubro, na véspera do seu concerto com as canções de Theresienstadt (Fundação Gulbenkian) — uma versão editada foi publicada, no Diário de Notícias (17 de Outubro), com o título 'Bach não tem de ser pomposo e distante'.
[1]
Recentemente, lançou um álbum com árias de Bach, como que regressando ao começo da sua carreira. Foi o resultado de uma decisão muito racional ou um gesto mais emocional?
Creio que ambas as coisas. Bach significou tanto para mim... E continua a significar! Foi com ele que comecei a minha carreira e, depois, era como se não tivesse havido de novo tempo para Bach: as óperas e os concertos sobrepuseram-se ao oratório. Finalmente, achei que era altura, até porque já não tenho 25 anos.
É mais difícil cantar Bach, agora?
Sim, pode ser...
Porquê exactamente?
Porque é preciso uma certa flexibi-lidade, a voz tem que estar ágil para cantar notas rápidas, “colora-tura”, “melisma”. É preciso ter controlo total. Eu quero ter controlo total sobre a minha voz quando canto música barroca. Talvez com alguma ópera ou lieder isso não seja tão importante e possa ser cantado quando se têm 65 ou 70 anos, mas não a música barroca.
O disco também não é uma abordagem muito tradicional de Bach, no sentido em que não é propriamente “suave”...
Não, não são “campos de algodão” [riso]. Há momentos mais sensuais ou contemplativos, mas há outros muito mais dramáticos. É uma escolha que vem tanto de mim como de Lars Ulrik Mortensen, o organista e maestro. Foi dele a ideia de fazermos a primeira ária, Widerstehe doch der Sünde, muito mais rápido do que é habitual. É possível cantar Bach de cem maneiras e não há nenhuma lei que diga que Bach tem de ser pomposo e distante.
Será que podemos dizer que Bach era os Abba do seu tempo?
Talvez seja um bocadinho demais [riso]. Handel seria os Abba do seu tempo. Ou Vivaldi. Bach era mais intelectual...
Mas é um facto que, por vezes, a tradição “fecha” a obra de determinados compositores, resistindo a toda a espécie de reinvenções. Será que o seu disco tenta também defender uma mudança de atitude?
Não, porque acho que é qualquer coisa que tem mais a ver comigo. Tento sempre isso: seja o que for que cante, procuro uma nova abordagem com um olhar limpo que corresponda ao que a música e o texto dizem. Trata-se de investir toda a minha experiência, imaginação e também a minha palette de cores. “And then I do it my way...” [riso] Claro que há algum repertório que não permite essa atitude: Wagner, por exemplo. Mas com Bach, Handel, Vivaldi, Brahms ou Schubert... não é que eu deva ser pessoal: eu quero ser pessoal.
E parece-lhe que discos como For the Stars ou I Let the Music Speak mudaram a percepção que o público tinha do seu trabalho?
Uma coisa é certa: muitos ficaram surpreendidos com o disco com Elvis Costello, já que a maior parte das pessoas não acreditam que uma cantora clássica possa interpretar aquele tipo de canções. Mais do que isso: ficaram surpreendidos por Costello querer trabalhar comigo e produzir o disco como produziu: não era um disco com um pesado som rock, mas muito pensado para o meu modo de cantar. Nesse sentido, o álbum com música dos Abba será menos pessoal: de facto, aquelas canções são muito difíceis de mudar e o “som Abba” esteve sempre presente.
Como é a sua atitude como ouvinte? Também ouve muitos tipos de música?
Sim, gosto de ouvir coisas muito diferentes: jazz, cantores pop, barroco francês. E tenho os meus autores preferidos: ouço muito Mark Minkov ou Brad Mehldau, gravações do maestro John Eliot Gardiner... Mas não ouço ópera! [riso]
Porquê?
Porque tenho uma atitude demasiado crítica. É uma doença.