O concerto de Anne Sofie von Otter no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian (dia 2, 19h00) não foi, em sentido estrito, um recital lírico. Não que não tenhamos escutado peças belíssimas, admiravelmente interpretadas, de autores como Ilse Weber (1903-1944), Erwin Schulhoff (1894-1942) ou Pavel Haas (1899-1944); antes porque a sua estrutura foi pensada para valorizar e, sobretudo, contextualizar os sons que nos remetem para a memória do Holocausto e, em particular, para a "montagem" do campo de Terezín/Theresienstadt, através do qual a máquina de propaganda nazi criou um "espaço" para as artes, tentando ocultar o assassinato em massa dos judeus.
Com um sentido pedagógico admirável, Anne Sofie von Otter [foto] não só apresentou e explicou as peças que cantou, como repartiu com Daniel Hope (violino) e Bengt Forsberg (piano) as palavras que remeteram para as memórias de Theresienstadt (Bebe Risenfors tinha a seu cargo a guitarra e o acordeão). Tratava-se, afinal, de não desligar a carnalidade da música das suas origens, de algum modo evocando também o facto de estarmos perante composições originalmente interpretadas no próprio campo, sobretudo em espectáculos organizados para criar uma ilusão de estabilidade e bem estar junto dos observadores da Cruz Vermelha internacional [uma fotografia de um desses espectáculos surge, aliás, reproduzida no programa de sala]. Tendo em conta que há nas canções de Theresienstadt uma fascinante variedade, desde a expressão crua da vida no campo até à evocação dos artifícios da música de cabaret, este foi um concerto em que triunfou o mais simples, mas também mais nobre, discurso criativo: o de um tenaz desejo de viver.