segunda-feira, setembro 14, 2015

Anti-Madonna

1. Se o leitor interpretou este título como uma figura de retórica dúplice, profundamente amarga, acertou. De facto, como defender Madonna? Aliás, esta não é uma questão de fã, muito menos de fanatismo — é igualmente válida para todos os que se expõe em algum registo artístico, nomeadamente na área da música.

2. Assim, com a Rebel Heart Tour a decorrer, foi posto a circular um video que se apresenta como o registo (quase) integral da performance da Material Girl em Montreal (disponível, por exemplo, no site All about Madonna). Poderíamos, como é óbvio, relançar a questão da legitimidade — aliás, da falta dela — para transformar, assim, em objecto público o que, para todos os efeitos, é um espectáculo com bilhetes pagos. Mas mesmo contornando tal questão, convenhamos que, em nome da admiração por Madonna, não seria possível fazer nada que fosse mais irresponsavelmente anti-Madonna.

3. Porquê? Porque o registo do concerto é um disparate de telemóvel (ou de câmara digital portátil, tanto faz), executado com um sentido de enquadramento tão tosco quanto desastrado, para mais com uma qualidade de som mais medíocre do que aquele que conseguíamos com um corrente gravador de cassetes de há 50 anos.

4. Há, de facto, uma cultura social — e das redes (ditas) sociais — que vive deslumbrada pelos poderes mais pueris da tecnologia. Carregar num botão do telemóvel e gerar qualquer coisa que possa ser partilhado... eis a ansiedade estéril de muitos consumidores, armados com o seu gadget na mão e nenhuma ideia na cabeça. Em boa verdade, os agentes de tal cultura, que são também os seus primeiros consumidores, não têm gosto por olhar nem por escutar.

5. Digamos, pelo menos, que a avaliar pelas fotografias que têm sido divulgadas, o guarda-roupa concebido por Ariane Phillips parece magnífico, além do mais acompanhando, num misto de sobriedade e ironia, o próprio envelhecimento de Madonna. A propósito, falando de coisas sérias: veja-se esta maravilhosa representação de La Vie en Rose, por Madonna, no Instagram de Phillips.

Sob o signo de Shyamalan (1/2)

M. Night Shyamalan está de regresso ao seu melhor, com A Visita, um filme construído a partir de imagens registadas pelas próprias personagens principais — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Setembro), com o título 'O assombramento e o medo segundo M. Night Shyamalan'.

Mesmo os fãs mais militantes de M. Night Shyamalan (n. 1970) terão ficado desconcertados com os caminhos que o seu trabalho estava a seguir, sobretudo depois de O Último Airbender (2010), uma grande produção juvenil, inspirada numa série animada de aventuras fantásticas. Seguiu-se uma parábola de ficção científica, Depois da Terra (2013), com Will Smith e o seu filho Jaden Smith, título que parecia confirmar um “desvio” algo incompreensível. Face à sua novíssima realização, A Visita, o mínimo que se pode dizer é que Shyamalan regressa às origens: uma história de assombramento e medo que se vai transfigurando numa invulgar experiência sensorial.
Vogamos, de facto, num universo que faz lembrar filmes anteriores de Shyamalan como Sinais (2002), A Vila (2004) ou O Acontecimento (2008), em que comunidades com limites físicos e simbólicos muito nítidos — uma família, uma comunidade rural, os passageiros de um comboio — se confrontavam com o poder maligno de forças desconhecidas, pondo em causa a sua própria sobrevivência. No caso de A Visita, tudo se passa num contexto ainda mais restrito e, por assim dizer, mais íntimo. Isto porque, no essencial, o filme se concentra em quatro personagens: os irmãos Tyler (Ed Oxenbould) e Becca (Olivia DeJonge), e os avós maternos (Peter McRobbie e Deanna Dunagan) que os recebem para uma visita de uma semana.
Lembramo-nos, claro, daquele que é o mais conhecido e, provavelmente, o melhor dos filmes de Shyamalan: O Sexto Sentido (1999). Aí, ele encenava a odisseia de uma criança (Haley Joel Osment), protagonista de um inusitado elo de ligação com um mundo habitado por entidades sem nome, para além das fronteiras da própria vida (“Vejo pessoas mortas”, era a frase que se tornou um emblema do próprio filme). Agora, Tyler e Becca vão descobrir, à sua própria custa, que a casa isolada onde vivem os avós não é exactamente um paraíso rural, mas sim um lugar de inquietantes acontecimentos, em particular a partir da barreira fatal das nove e meia da noite...
Dizer que estamos perante modelos do corrente cinema de terror será, talvez, uma sugestão favorecida pelas mensagens do próprio mercado, mas muito discutível face às singularidades da mise en scène de Shyamalan. Podemos mesmo caracterizá-lo como um contador de histórias (aliás, assumindo sempre as fundamentais funções de argumentista dos seus filmes) que inventou um sistema muito particular de narrativas em que tudo se joga através de uma tensão constante entre o que as personagens vêem e os significados que atribuem àquilo que só conseguem imaginar.
No caso de A Visita, Shyamalan explora tal tensão de forma muito peculiar e, à sua maneira, estranhamente sensual. Porque não estamos apenas perante eventos bizarros e perturbantes, como o facto de o avô depositar misteriosos restos biológicos numa arrecadação onde mais ninguém pode entrar, ou a avó passear nua pela casa durante a noite... Acontece que tais eventos nos surgem filtrados pelos olhares das duas crianças, já que, através de um elaborado trabalho de montagem, A Visita se organiza a partir das imagens que Tyler e Becca registam com as suas câmaras portáteis.
Pode dizer-se que A Visita é também uma visão insólita, misto de ironia e crueldade, das ilusões da nossa sociedade da “comunicação”. Assim, através das suas câmaras ágeis, e também do computador que lhes serve para comunicar com a mãe (Kathryn Hahn), Tyler e Becca são figurinhas típicas de um tempo em que a intensa circulação de mensagens (de imagem e som) passou a ser um dado corrente do quotidiano; ao mesmo tempo, a fruição global da tecnologia não apaga, antes parece atrair, os fantasmas mais primitivos.
Se há referências que podemos evocar a propósito da obra de Shyamalan, elas não estão no terror contemporâneo, mas sim em modelos de um outro cinema anti-realista, também ele primitivo, que teve em Jacques Tourneur (1904-1977), autor de Cat People/A Pantera (1942), um dos mestres absolutos. Com Shyamalan, a naturalidade dos lugares e das pessoas é uma porta de entrada numa paisagem em que todas as nossas certezas vacilam.

domingo, setembro 13, 2015

Uma reportagem realmente televisiva

Num panorama em que o circo obsceno à porta de José Sócrates anula qualquer réstea de sensatez, é bom deparar com a sobriedade de uma reportagem sobre o papel terapêutico que alguns animais podem desempenhar — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Setembro), com o título 'História com cães e cavalos'.

Será por pecado de altivez ou arrogância, mas devo confessar que é cada vez menor a minha crença na possibilidade de encontrar dispositivos básicos, singelamente tradicionais, de jornalismo televisivo. Em mais um fenómeno de trágica transversalidade, o circo obsceno montado à porta da casa onde está a viver José Sócrates parece trazer renovada motivação ao meu cepticismo. E pasmo com o facto de não emergir uma única voz do meio político capaz de serenamente dizer que aquilo que está a acontecer só pode agravar a percepção do jornalismo como evento anedótico, empurrando a política para o domínio do irrisório.
No meio de tão angustiada e angustiante paisagem, foi por acidente que deparei com uma reportagem, intitulada “Os Tratadores” (SIC Notícias), assinada por Miriam Alves (jornalista) e Rodrigo Lobo (imagem). Não posso esconder a emoção profunda que me provocou, mas confesso também que tenho receio de me exprimir desse modo, quanto mais não seja porque a exploração das “emoções” atingiu dimensões vergonhosas, desde a mercantilização da intimidade na reality TV até à promoção de muitas formas de histeria futebolística.
Sublinhemos, por isso, o mais linear: desde a depuração técnica (incluindo a gestão dos intertítulos e, em particular, a sóbria elegância da montagem) até à construção metódica de um ponto de vista, é bom, por uma vez, deparar com um trabalho que se mantém fiel aos padrões mais clássicos — e mais sérios — da arte de construir uma reportagem.
A participação de animais (cães e cavalos) em diversas formas de terapia em escolas e hospitais do nosso país, surge-nos, assim, apresentada na sua imensa complexidade humana e médica. Nenhum paternalismo em relação aos pacientes, nenhuma descrição pitoresca dos próprios animais — antes a afirmação simples, mas essencial, de que usar uma câmara (e um microfone) para compreender o mundo à nossa volta é coisa árdua, exigindo disponibilidade para olhar para além de qualquer cliché. Devia ser a regra, mas é a excepção.

Filme venezuelano vence em Veneza

O filme venezuelano Desde Allá [trailer], primeira longa-metragem de Lorenzo Vigas, foi distinguido com o Leão de Ouro da 72ª edição do Festival de Veneza. O júri oficial, presidido por Alfonso Cuarón, atribuíu o seu Grande Prémio a Anomalisa (EUA), de Charlie Kaufman e Duke Johnson, tendo o Leão de Prata de melhor realizador ido para o argentino Pablo Trapero, por El Clan — palmarés integral no site do festival.

sábado, setembro 12, 2015

A IMAGEM: Jerome Sessini, 2015

JEROME SESSINI / Magnum
Sérvia - Migrantes em trânsito
2015

O realismo segundo Anders Krisár

As esculturas do sueco Anders Krisár e, de um modo geral, os seus trabalhos figurativos implicam um desafio visceralmente realista. A saber: o efeito de reconhecimento gerado pelos seus objectos não é dissociável do fascínio abstracto com que (ou para que) nos convocam. Exemplo recente da sua actividade está na capa do nº 15 de The Last Magazine: a escultura da modelo canadiana Daria Werbowy possui a serenidade indizível da morte, mas também uma vitalidade carnal a que não é possível ficar indiferente — com assinatura de Kevin Greenberg, a revista publica um perfil do artista, reproduzindo algumas das suas peças, celebrando o modo como o seu universo "espelha e perturba a realidade".

sexta-feira, setembro 11, 2015

Refugiados — uma criança viva


I. Muitos jornalistas — entre os quais se incluem quase todos os que se exprimem nas televisões — arranjam sempre maneira de contornar qualquer dúvida, reflexão ou interrogação sobre as práticas selectivas de imagens. Aliás, supor que as imagens são sempre seleccionadas e que não se impõem por qualquer desígnio resultante daquilo que dão a ver, eis uma hipótese que repelem de imediato: querem fazer-nos crer (ou precisam de acreditar) que as suas escolhas são resultado de algum desígnio divino, natural e inimputável.

II. Assim aconteceu, há poucos dias, com a imagem de uma criança morta numa praia da Turquia. Subitamente, através de um fenómeno realmente transversal e global, a imagem (impressionante, digna do melhor jornalismo fotográfico — não é isso que está em causa) foi promovida à condição de símbolo único e unívoco do drama dos refugiados, afunilando qualquer hipótese de reflexão sobre a complexidade do drama que reflecte. Que tivesse havido líderes políticos que nela reconheceram um impulso decisivo para agir justificaria, aliás, uma pergunta que ninguém formulou: antes disso, estavam a olhar para onde?

III. A fotografia da agência Reuters, acima reproduzida e publicada em alguns órgãos de informação (por exemplo: International Business Times) apresenta um polícia dinamarquês a brincar com uma criança de uma família de refugiados — corresponde a um momento de pausa no fluxo de pessoas na zona de Padborg, próximo da fronteira com a Alemanha. E suscita uma interrogação didáctica: por que é esta fotografia, ou outra do mesmo tom emocional, não surge tratada com a mesma evidência e omnipresença da imagem da criança morta? Quando se escolhe uma criança viva?

IV. A pergunta, importa reconhecê-lo, pode atrair o cinismo mais estúpido. Não se trata, entenda-se, de rasurar as tragédias inerentes ao movimento de refugiados e, em particular, as questões de infinita delicadeza (humana e política) que tais tragédias colocam à Europa. Trata-se apenas de voltar a lembrar que a lógica dominante de dramatização informativa é regida por uma pulsão niilista a que imagens como a da criança morta na praia emprestam uma caução simplista, tão manipulada quanto manipuladora. Quantas imagens de outra intensidade simbólica — e também de outra pertinência informativa — ficam por mostrar?

>>> Röszke, perto da fronteira entre Hungria e Sérvia — refugiados aguardam transporte para um centro de registo [Foto: Z. Gal / Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados].


V. O modo dominante de fazer notícias — e, em particular, o modo dominante de mostrar imagens — quase nunca revela disponibilidade para realmente olhar o que quer que seja. As imagens tendem, por isso, a ser instrumentalizadas como matéria de um clímax mais ou menos breve — a regra é mesmo: usar e passar à frente. No limite, desde a saga dos refugiados até à boçalidade de algum herói da reality Tv, qualquer imagem serve para tal programa cognitivo.

Ver + ouvir:
Yo La Tengo, Friday I'm In Love



Entre as versões que encontramos em Stuff Like That There, o novo álbum dos Yo La Tengo está esta que reinventa (e muito bem) um clássico dos The Cure. O teledisco é um daqueles que ficam desde já na lista dos melhores de 2015.

Nos 80 anos de Arvo Pärt


Hoje é dia de soprarmos as 80 velas a um dos mais aclamados e reconhecidos entre os compositores do nosso tempo. Assinalando o aniversário apresentei um texto na Máquina de Escrever onde digo:

Os caminhos que a música tem tomado nas últimas décadas tem estreitado os fossos que outrora pareciam separar os universos das várias músicas. E entre as figuras que cedo começaram a habitar tanto entre as discografias mais dominadas pelos gostos pela música clássica, como junto das mais atentas às electrónicas (ambientais ou nem por isso), até mesmo alguma pop ou jazz, está a de Arvo Pärt. Através de uma primeira sucessão de álbuns lançados na ECM nos anos 80, como Tabula Rasa (1984), Arbos (1987) ou Passio (1988), as suas visões muito peculiares sobre o minimalismo e expressões de uma música sagrada tão herdeira de figuras remotas quanto capaz de sugerir espaços de diferente placidez e devoção em terreno atual cativaram atenções e inscreveram o seu nome naquele raro patamar de reconhecimento a que chegam os músicos do seu tempo que cativam a atenção dos seus contemporâneos.

Podem ler o texto completo aqui.

Para ler: Duran Duran evocam memórias
em discurso direto

No dia em que é lançado o novo álbum Paper Gods, os Duran Duran partilham no Guardian memórias de alguns momentos cruciais na história da sua carreira.

Podem ler aqui