sexta-feira, setembro 11, 2015

Refugiados — uma criança viva


I. Muitos jornalistas — entre os quais se incluem quase todos os que se exprimem nas televisões — arranjam sempre maneira de contornar qualquer dúvida, reflexão ou interrogação sobre as práticas selectivas de imagens. Aliás, supor que as imagens são sempre seleccionadas e que não se impõem por qualquer desígnio resultante daquilo que dão a ver, eis uma hipótese que repelem de imediato: querem fazer-nos crer (ou precisam de acreditar) que as suas escolhas são resultado de algum desígnio divino, natural e inimputável.

II. Assim aconteceu, há poucos dias, com a imagem de uma criança morta numa praia da Turquia. Subitamente, através de um fenómeno realmente transversal e global, a imagem (impressionante, digna do melhor jornalismo fotográfico — não é isso que está em causa) foi promovida à condição de símbolo único e unívoco do drama dos refugiados, afunilando qualquer hipótese de reflexão sobre a complexidade do drama que reflecte. Que tivesse havido líderes políticos que nela reconheceram um impulso decisivo para agir justificaria, aliás, uma pergunta que ninguém formulou: antes disso, estavam a olhar para onde?

III. A fotografia da agência Reuters, acima reproduzida e publicada em alguns órgãos de informação (por exemplo: International Business Times) apresenta um polícia dinamarquês a brincar com uma criança de uma família de refugiados — corresponde a um momento de pausa no fluxo de pessoas na zona de Padborg, próximo da fronteira com a Alemanha. E suscita uma interrogação didáctica: por que é esta fotografia, ou outra do mesmo tom emocional, não surge tratada com a mesma evidência e omnipresença da imagem da criança morta? Quando se escolhe uma criança viva?

IV. A pergunta, importa reconhecê-lo, pode atrair o cinismo mais estúpido. Não se trata, entenda-se, de rasurar as tragédias inerentes ao movimento de refugiados e, em particular, as questões de infinita delicadeza (humana e política) que tais tragédias colocam à Europa. Trata-se apenas de voltar a lembrar que a lógica dominante de dramatização informativa é regida por uma pulsão niilista a que imagens como a da criança morta na praia emprestam uma caução simplista, tão manipulada quanto manipuladora. Quantas imagens de outra intensidade simbólica — e também de outra pertinência informativa — ficam por mostrar?

>>> Röszke, perto da fronteira entre Hungria e Sérvia — refugiados aguardam transporte para um centro de registo [Foto: Z. Gal / Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados].


V. O modo dominante de fazer notícias — e, em particular, o modo dominante de mostrar imagens — quase nunca revela disponibilidade para realmente olhar o que quer que seja. As imagens tendem, por isso, a ser instrumentalizadas como matéria de um clímax mais ou menos breve — a regra é mesmo: usar e passar à frente. No limite, desde a saga dos refugiados até à boçalidade de algum herói da reality Tv, qualquer imagem serve para tal programa cognitivo.