terça-feira, outubro 31, 2017

Wim Wenders em Lisboa (1/3)

FOTO: Nuno Pinto Fernandes / DN
Wim Wenders é um militante defensor da diversidade do cinema e da cultura europeia, não se cansando de chamar a atenção para as exigências da nova conjuntura digital — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (26 Outubro), com o título '“A herança cinematográfica europeia necessita de ser resgatada do esquecimento"'.

O cineasta alemão Wim Wenders foi distinguido com o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, atribuído pelo Centro Nacional de Cultura. Em cerimónia realizada na Fundação Gulbenkian, o prémio foi entregue pelo Presidente da República que, na mesma ocasião, o condecorou com o grau de comendador da Ordem do Mérito [DN, 24 Outubro]. Como disse Marcelo Rebelo de Sousa, Wenders “nunca foi estrangeiro em Portugal” — ele é, afinal, um cidadão da Europa com uma obra de viajante pela pluralidade cultural do nosso continente e também, mais do que nunca, apostado em enfrentar os desafios da era digital.

O Prémio Helena Vaz da Silva consagrou-o, não apenas como cineasta, mas enquanto personalidade do mundo da cultura europeia. Como encara tal distinção?
O que está em jogo é um certo empenho na Europa: a ideia de que necessitamos de algo para o futuro, algo que vem do passado e corre o risco de se perder. Não é, portanto, um prémio exactamente para mim, mas sim por aquilo que muitas pessoas estão a fazer, sendo eu apenas uma delas. Sou um empenhado europeu, filmei em toda a Europa e, quase involuntariamente, contribuí para preservar uma certa herança. Por exemplo, em Lisboa: filmei aqui no começo dos anos 80 [O Estado das Coisas], depois em 1990 [Até ao Fim do Mundo] e ainda em 1994 [Lisbon Story].

Que herança é essa?
A noção de herança é algo estranha: pode sugerir uma certa ideia de museu, mas não é disso que se trata — a herança é algo que diz respeito ao nosso futuro.

Na defesa dessa herança, qual a importância da Academia Europeia de Cinema a que preside?
Defendemos algo que não pode ser dado como adquirido. O cinema europeu está a ser atacado por uma indústria muito mais poderosa. É um cinema frágil, feito por países muito diferentes, mas o seu conjunto representa um valor fundamental: a nossa própria diversidade. E está a desaparecer. Quase tudo o que eu fiz há 40 anos está a desaparecer, a não ser que seja preservado, ajudando os filmes a entrar na nova idade digital. Hoje em dia, se um determinado filme apenas existe numa cópia em película, esse filme está morto — para viver, necessita de ser transferido para digital e, desse modo, aceder a várias plataformas. Grande parte da nossa herança necessita, assim, de ser resgatada do esquecimento.

Diz-se, por vezes, que há uma relação fraca dos espectadores mais jovens com os filmes europeus — concorda com esse ponto de vista?
Em muitos casos sim, é uma triste verdade. Mas também é verdade que onde quer que haja uma sala e pessoas empenhadas em mostrar cinema europeu devidamente contextualizado, os jovens mostram-se interessados, até mesmo entusiasmados. É fundamental educar os jovens para o cinema, começando nas escolas porque é a nossa herança que está em jogo. Há muitos jovens que cresceram sem a conhecer: ensinamos-lhes literatura ou pintura, mas não lhes ensinamos a arte mais ameaçada que temos, a arte das imagens em movimento.

Em vários dos seus filmes, como O Amigo Americano, Paris, Texas ou Terra da Abundância, encontramos uma relação forte com a cultura americana. Como avalia o peso dessa relação no seu universo criativo?
Cresci admirando a cultura americana, porque cresci num país destruído — a Europa não passava de uma ficção. A certa altura, era mais difícil ir à outra metade da Alemanha do que ir à Lua. A América era uma bela utopia, imensa e livre, reflectida na beleza do seu cinema. Não havia cinema no meu país e, de facto, só mais tarde vim a conhecer Fritz Lang ou Murnau. A América apaixonava-me, não necessariamente através das ideias, mas pelo espírito, pela grandeza, pelas imagens que de lá chegavam. Aliás, não nos podemos esquecer que o cinema americano é, em grande parte, uma invenção de europeus, a começar pelos anos 20 e 30. No meu caso, foi depois disso que aprendi a admirar as minhas origens europeias, descobrindo cineastas como Bergman, Truffaut ou Godard.

[continua]

Gary Clark Jr. — sob o signo dos Beatles

Espectacular versão do clássico Come Together, dos Beatles, por Gary Clark Jr.! A canção integra a banda sonora do filme Justice League [estreia: 16 Novembro] e tem teledisco a condizer — realização de Kris Merc.

segunda-feira, outubro 30, 2017

O cinema reinventa Van Gogh

A Paixão de Van Gogh
(2017) 
A Paixão de Van Gogh é um acontecimento do cinema de animação que, em boa verdade, transcende as suas fronteiras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Outubro), com o título 'Reinventando Van Gogh em desenhos animados'.

Foi já há mais de vinte anos, em 1995, que o filme Toy Story, dos estúdios Pixar, revolucionou a nossa percepção dos desenhos animados em cinema: a primeira longa-metragem de animação totalmente executada com o recurso a computadores abriu um novo capítulo numa saga que, até aí, tinha os estúdios Disney como protagonistas (curiosamente, em 2006, a Pixar viria a ser adquirida pela Disney).
Agora, com A Paixão de Van Gogh, não estaremos perante um fenómeno da mesma escala, até porque não há comparação possível com o poder promocional da Pixar/Disney. O certo é que este filme co-realizado por uma polaca, Dorota Kobiela, e um inglês, Hugh Welchman, entra na história também como um objecto pioneiro: trata-se da primeira longa-metragem totalmente criada a partir de imagens a óleo.
Importa, em qualquer caso, não encarar o acontecimento como uma espécie de novo momento “zero” na história da própria animação. Isto porque A Paixão de Van Gogh nasce de um sugestivo cruzamento com a rotoscopia, um dos mais primitivos processos de animação (concebido há cem anos por Max Fleischer, animador americano nascido na Polónia), envolvendo a criação de desenhos a partir de imagens previamente filmadas, permitindo reproduzir, por exemplo, os gestos e movimentos dos actores.
Assim aconteceu na gestação de A Paixão de Van Gogh. Mais de uma centena de desenhadores trabalharam a partir de uma dupla estratégia figurativa. Por um lado, foram registadas acções com actores, incluindo Robert Gulaczyk no papel do pintor e outros assumindo várias pessoas que encontramos nos seus quadros — por exemplo, Jerome Flynn, Saoirse Ronan e Douglas Booth, respectivamente como o Dr. Gachet, Marguerite Gachet e Armand Roulin (este tratado como “narrador” do filme). Por outro lado, os espaços dessas acções foram desenhados a partir dos próprios quadros de Van Gogh, incluindo os célebres “Terraço do Café à Noite” e “Quarto em Arles”, ambos de 1888.
Quarto em Arles
(1888)
Apetece definir os resultados como uma espécie de “pintura em movimento”. E assim é, sem dúvida — não será preciso o espectador ser especialista em Van Gogh para ir detectando linhas, cores e enquadramentos que há muito pertencem a um certo imaginário popular da pintura. Ao mesmo tempo, porém, o filme vai cumprindo um programa dramático apostado em resistir aos estereótipos “psicológicos” que, não poucas vezes, condicionam a representação do pintor — central no argumento é mesmo a discussão das condições dúbias em que ocorreu o seu suicídio.
Nesta perspectiva, podemos considerar A Paixão de Van Gogh como um trabalho cúmplice de obras de excepção que já trataram a personagem, incluindo A Vida Apaixonada de Van Gogh (1956), do americano Vincente Minnelli, e Van Gogh (1991), do francês Maurice Pialat.
Será que A Paixão de Van Gogh poderá funcionar como momento fundador de um novo capítulo da animação? Claro que a abordagem crítica de um filme não envolve o dom da “profecia”. Em todo o caso, registe-se que o filme obteve já este ano o prémio do público no Festival de Annecy, em França, reconhecido como um dos mais importantes certames no sector da animação cinematográfico. E sublinhe-se também o especial cuidado com que está a ser tratada a sua exibição nas salas dos EUA. O eventual impacto americano de A Paixão de Van Gogh poderá mesmo ser um trunfo decisivo para a temporada de prémios e, no limite, para a obtenção de uma nomeação para o Oscar de melhor longa-metragem de animação.
Auto-retrato
(1889)

Zombies e vampiros da Renault

Um zombie a conduzir um automóvel?... Mais do que isso: a arrumar o veículo com uma destreza que não se explica só pelo sistema de auxílio ao estacionamento... Eis um inusitado anúncio dos automóveis Renault (colando-se ao calendário cada vez mais universal do Halloween), executado com surpreendente sofisticação pelo departamento parisiense da agência Publicis. Aliás, a inventiva campanha tem uma versão com vampiros, porventura ainda mais "publicitariamente incorrecta"... Eis duas magníficas proezas de um marketing insatisfeito com as castas rotinas do consumo.



domingo, outubro 29, 2017

"Boys & Girls", por Tom Ford

A nova campanha de Tom Ford intitula-se "Boys & Girls", apresentando-se sustentada por um magnífico clip, a meio caminho entre passagem de modelos e teledisco. Veja-se como o realizador de Um Homem Singular (2009) e Animais Noturnos (2016) sabe definir um conceito de pose e diversidade, elegância e contenção — em menos de 60 segundos.

Sonhos franceses e portugueses

* TODOS OS SONHOS DO MUNDO, de Laurence Ferreira Barbosa
[ DN, 26-10-17 ]

Como filmar os portugueses emigrados em França, escapando aos lugares-comuns que oscilam entre o moralismo mais tosco e o pitoresco mais simplista? O novo filme de Laurence Ferreira Barbosa aposta numa narrativa “na corda bamba”, por um lado convocando alguns clichés, por outro lado desmontando-os de forma inesperada e sugestiva.
A energia da história enraíza-se, afinal, no facto de a jovem protagonista (Paméla Constantino Ramos) começar por acreditar que as suas férias anuais, algures numa zona rural de Portugal, constituem um espécie de reencontro utópico com um paraíso desconhecido... O filme vai mostrando a lenta desagregação das suas ilusões, no fundo abrindo-se a uma ideia essencial de revelação individual que, em última instância, não é francesa nem portuguesa.

sábado, outubro 28, 2017

Quem se lembra de Elia Kazan?

O título final da filmografia de Elia Kazan chegou, finalmente, ao DVD — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Outubro).

Um aspecto desconcertante das “sociedades de informação” em que vivemos é a paradoxal cumplicidade entre informação, precisamente, e ausência de conhecimento — como se a acumulação de dados gerasse uma perversa desvalorização da memória e da interpretação do passado. Observe-se o modelo publicitário do jovem sempre ocupado com telemóvel e uma infinidade de “gadgets”, mas ignorando a história da humanidade. Nos concursos televisivos, tornou-se mesmo normal reagir a um tema do passado com uma frase patética: “Nessa altura ainda não tinha nascido”. Mozart? Rembrandt? Eça de Queiroz? Que pena, ainda não tinha nascido...
Elia Kazan
(1909-2003)
Questão vasta, sem dúvida, de uma só vez cultural e política — e para a qual não temos tido política cultural, de direita ou esquerda, que arrisque enfrentá-la. No caso do mercado cinematográfico, há um nicho que funciona como esclarecedor sintoma. Assim, a oferta de filmes em DVD (incluindo o Blu-ray) passou a integrar muitos títulos clássicos, mais ou menos “antigos”. Magnífico! Em todo o caso, a indiferença mediática pelo cinema como património faz com que, socialmente, o mundo dos filmes pareça existir apenas em função do “blockbuster” que anda a ser promovido há três meses...
Questão de nicho, repito. Mas o detalhe reflecte os movimentos do todo. Exemplo actual: o lançamento em DVD de O Grande Magnate (1976), de Elia Kazan. Escusado será dizer que, mesmo sendo um inédito em DVD, assinado por um nome incontornável na história de Hollywood, não foi assunto de manchetes. Fica, em qualquer caso, a pergunta: na saturação de imagens que habitamos, quem conserva alguma memória da obra imensa e convulsiva de Kazan?
Estamos, convém lembrar, perante um filme cujo elenco integra nomes como Robert De Niro, Jack Nicholson, Jeanne Moreau, Tony Curtis e Robert Mitchum. Mais do que isso, O Grande Magnate é a adaptação de The Last Tycoon, o romance inacabado de F. Scott Fitzgerald tendo por cenário os bastidores da idade de ouro de Hollywood.
Leio na capa do DVD que a personagem central do produtor Monroe Stahr (De Niro) é uma “caricatura disfarçada de Irving Thalberg, um dos produtores da MGM”. Curiosa visão, não apenas do filme, mas do próprio mundo do cinema. Não há nada de caricatural em Kazan (muito menos em Fitzgerald): esta é uma visão eminentemente trágica da “fábrica de sonhos”, pontuada pelo mais gélido desencanto romântico. Seria a derradeira realização de Kazan (faleceu em 2003, contava 94 anos), simbolicamente encerrando o classicismo de Hollywood.

"Rolling Stone" — 50 anos de fotos

Madonna por HERB RITTS (1987)
Mais uma proposta da revista Rolling Stone para comemorar os seus 50 anos: um imenso portfolio de 66 imagens que é, de uma só vez, um painel de símbolos incontornáveis da cultura popular e uma galeria de fotógrafos de excelência — ficam três exemplos, algures entre a reportagem e a mitologia.
David Letterman por MARK SELIGER (1993) 
Keith Richards por ANNIE LEIBOVITZ (1972)

O quase romantismo de Bonobo

Com colaboração do duo Rhye, Break Apart é um dos temas de Migration, sexto álbum de estúdio do DJ inglês Bonobo (nome artístico do inglês Simon Green). Já tinha um teledisco, especialmente envolvente pela utilização das imagens de paisagens. Agora, surge num novo clip, assinado por Spencer Creigh, por assim dizer reconvertendo a imensidão dos espaços exteriores no interior claramente delimitado de um quarto de motel — um belo exemplo da ansiedade quase romântica que circula pelos nossos dias.

sexta-feira, outubro 27, 2017

Uma memória de JFK [por Errol Morris]

Ordenada por Donald Trump, a divulgação de mais de 2800 documentos relacionados com o assassinato do Presidente John F. Kennedy (no dia 22 de Novembro de 1963, em Dallas) veio alargar a já gigantesca literatura sobre um crime cuja memória permanece associada a uma hipótese de conspiração que, em qualquer caso, ninguém provou de modo irrefutável — trata-se de um "imenso tesouro" para a pesquisa da verdade, segundo as palavras do New York Times.
Na sua secção de video, o jornal repôs uma pequena preciosidade cinematográfica assinada pelo grande Errol Morris: chama-se The Umbrella Man e apresenta-nos o escritor, investigador e professor Josiah Thompson — autor de Six Seconds in Dallas: A Micro-Study of the Kennedy Assassination (1967) —, dissertando sobre o misterioso "homem do guarda-chuva", presente em várias imagens (fotográficas e cinematográficas) da parada das ruas de Dallas em que JFK encontraria a morte — uma bela e didáctica reflexão sobre a verdade, ou melhor, a produção de verdade.

Os 17 anos segundo Téchiné

* QUANDO SE TEM 17 ANOS, de André Téchiné
[ DN, 26-10-17 ]

Nome fundamental da história moderna do cinema francês, André Téchiné tem sido, nos últimos anos, uma presença irregular no mercado português (Les Témoins e La Fille du RER, respectivamente de 2007 e 2009, não chegaram às salas). Surge, agora, esta sua realização de 2016 [que teve ante-estreia no Queer Lisboa], um retrato da descoberta amorosa e sexual de dois rapazes em que, inevitavelmente, sentimos os ecos de Os Juncos Silvestres (1994). Alheio a qualquer determinismo psicológico, ou simbolismo “sociológico”, Téchiné sabe construir uma teia de factos e sensações em que o íntimo e o social, o individual e o colectivo, se expõem nos seus complexos cruzamentos — sem dúvida uma das estreias fundamentais de 2017, não esquecendo que, entretanto, o cineasta já dirigiu o magnífico Nos Années Folles, revelado em Maio no Festival de Cannes.

"A Noite dos Mortos Vivos" em 4K

À beira de completar meio século (em 2018), o clássico A Noite dos Mortos Vivos, de George A. Romero, passou a existir em imagens de definição 4K, graças à acção conjunta do MoMA e da Film Foundation (presidida por Martin Scorsese). Regressa, assim, a matriz mais forte do filme de zombies, ironicamente, há muito tempo, do domínio público (devido a um desentendimento entre Romero e o seu distribuidor, em 1968) — está disponível, por exemplo, no Internet Archive.
A distribuidora Janus Films vai, agora, lançar a nova cópia no mercado dos EUA e, face ao novo trailer, o menos que se pode dizer é que estamos perante um exemplar trabalho de restauro.

quinta-feira, outubro 26, 2017

"Freedom! '90 [canções]

George Michael
Freedom! '90 - Live
Listen Without Prejudice / MTV Unplugged (2017)


A IMAGEM: Glen Luchford, 2017

GLEN LUCHFORD
Vogue UK
Setembro 2017

Brie Larson + Destin Daniel Cretton

* O CASTELO DE VIDRO, de Destin Daniel Cretton
[ DN, 19-10-17 ]

Foi através do magnífico Temporário 12 (2013), de Destin Daniel Cretton, que descobrimos o invulgar talento de Brie Larson. Realizador e actriz voltam a reunir-se neste The Glass Castle, inspirado nas memórias da jornalista Jeannette Walls, evocando a sua atribulada existência nómada, nas décadas de 60/70, com os pais apostados em manter uma existência marginal, mais próxima da “verdade” da natureza.
Infelizmente, o filme nem sempre encontra soluções equilibradas e envolventes para gerir a complexa teia passado/presente. Seja como for, trata-se de uma crónica curiosa sobre a herança libertária dos “sixties”, contando com um elenco de sólidas competências: para além de Larson, no papel de Jeannette, encontramos Woody Harrelson e Naomi Watts como o pai e a mãe de tão insólita família.

quarta-feira, outubro 25, 2017

Fats Domino (1928 - 2017)

[PBS]
Figura pioneira do rock'n'roll, o americano Antoine Domino, Jr., popularizado como Fats Domino, faleceu no dia 24 de Outubro, em sua casa em Harvey, Louisiana — contava 89 anos.
Natural de Nova Orleães, foi aí que começou a tocar piano, primeiro em bares, depois integrando a banda Solid Senders. O seu talento, enraizado no universo rhythm and blues e na tradição do boogie-woogie, ajudou-o a definir uma personalidade própria em que muitos, de Elvis Presley aos Beatles, iriam reconhecer as marcas fundadoras do rock'n'roll. Em 1955, a canção Ain't That a Shame seria o primeiro de muitos sucessos, numa carreira em que vendeu mais de 60 milhões de discos. Blueberry Hill, I'm Walking ou Whole Lotta Lovin' são alguns dos seus temas clássicos. Em 1986, foi distinguido com um Grammy de carreira; uma das suas últimas performances públicas ocorreu em 2015, no funeral de B.B. King, em que cantou Amazing Grace.

>>> Concerto no festival Austin City Limits (22 Outubro 1986).


>>> Obituário no New York Times.

Walter Lassally (1926 - 2017)

Nascido na Alemanha, foi um notável director de fotografia, primeiro no cinema britânico, depois em Hollywood: Walter Lassally faleceu no dia 23 de Outubro, em Creta, na Grécia — contava 90 anos.
A sua família de origem judaica fugiu ao nazismo, fixando-se em Inglaterra. O trabalho do pai, sobretudo na produção de documentários industriais, conduzindo-o ao mundo do cinema, começando a trabalhar nos Riverside Studios, em Londres. Associado ao documentarismo do free cinema e às ficções da "nova vaga" britânica, o seu nome surge em alguns dos respectivos títulos fundamentais, incluindo We Are the Lambeth Boys (1959), de Karel Reisz, The Loneliness of the Long Distance Runner (1962) e Tom Jones (1963), ambos de Tony Richardson.
Com o muito popular Zorba, o Grego (1964), de Michael Cacoyannis, Lassally entrou na elite de Hollywood, arrebatando o Oscar de melhor fotografia a preto e branco (na altura, preto e branco e cores eram duas categorias autónomas). Entre os seus trabalhos mais notáveis incluem-se ainda, por exemplo, Selvagens (1972), de James Ivory, Memórias de Uma Sobrevivente (1981), de David Gladwell, Verão Indiano (1983) e As Mulheres de Boston (1984), ambos de novo de James Ivory. Em 1987, publicou a auto-biografia Itinerant Cameraman; desde meados dos anos 90, vivia em Stavros, na ilha de Creta, na zona onde foi rodado Zorba, o Grego .

>>> Trailers de Tom Jones e Zorba, o Grego.




>>> Obituário no jornal The Guardian.

terça-feira, outubro 24, 2017

Jo Nesbø em versão medíocre

* O BONECO DE NEVE, de Tomas Alfredson
[ DN, 19-10-17 ]

Rezam as crónicas que, em 2013, Martin Scorsese esteve ligado a este projecto de adaptação de um dos livros do norueguês Jo Nesbø tendo como personagem central o detective Harry Hole. Da sua passagem pelo projecto terá ficado uma referência protocolar no genérico (como produtor executivo) e a participação na montagem da sua colaboradora Thelma Schoonmaker. De resto, somos presenteados com uma penosa colecção de lugares-comuns visuais, dramáticos e narrativos que colocam O Boneco de Neve ao nível das piores séries televisivas que, hoje em dia, nascem do pressuposto de que a personagem de um maníaco assassino constitui, por si só, um grande trunfo de “suspense”...
Que está a fazer um actor como Michael Fassbender (como intérprete de Hole) no meio de semelhante confusão? Fica a sensação de que nem ele saberá responder.

segunda-feira, outubro 23, 2017

O novo Paul Thomas Anderson!

Se temos o gosto de especular sobre os Oscars (... and why not?), podemos apostar sem receio em Phantom Thread: o novo filme de Paul Thomas Anderson, sobre um estilista de moda nos anos 1950, em Londres — diz-se que será o derradeiro papel de Daniel Day-Lewis —, vai estar, por certo, na linha da frente para algumas das principais estatuetas douradas. E se, além do mais, vibramos cada vez que se anuncia um filme que envolva gente que muito respeitamos...
Fiquemos, para já, pela sedução do trailer.

domingo, outubro 22, 2017

Vida e morte segundo Kiarostami

Homayoun Ershadi em O Sabor da Cereja
O Sabor da Cereja, de Abbas Kiarostami, regressou em cópia restaurada — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Outubro), com o título 'Kiarostami contra a publicidade'.

Posso assumir a responsabilidade que me cabe na percepção corrente do cinema (necessariamente localizada e limitada), mas penso muitas vezes que, ao falarmos dos filmes, falamos sempre pouco de... cinema. Sinal dos tempos, sem dúvida, desespero de uma sociedade de fútil aceleração informativa que tende a desqualificar o simples gosto pela singularidade das linguagens — a começar pela linguagem cinematográfica.
Pensei neste drama (que, de modo mais ou menos consciente, todos partilhamos) perante a reposição, em cópia restaurada, do maravilhoso O Sabor da Cereja, do iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016), distinguido em 1997 com a Palma de Ouro de Cannes (ex-aequo com A Enguia, do japonês Shohei Imamura). Pensei, sobretudo, no facto de qualquer corrente descrição “psicológica” se revelar insuficiente para dar conta do modo como o filme nos pode afectar e comover.
Abbas Kiarostami
Dir-se-ia que esperamos algum elemento (“psicológico”, precisamente) para enquadrar a gélida demanda do protagonista, um homem de nome Badii. Isto porque ele não está apenas empenhado em suicidar-se. Dialogando com aqueles que transporta no seu veículo — um jovem soldado, um estudante de teologia, um taxidermista que exalta as glórias naturais (incluindo o sabor da cereja) —, Badii quer que alguém lhe garanta que o vai sepultar. Kiarostami encena-o como um buraco negro, impossível de transformar em “tema” ou “símbolo” do que quer que seja.
Observe-se o rosto impassível de Badii, interpretado por esse brilhante actor que é Homayoun Ershadi. O que nele deciframos, ou julgamos decifrar, não envolve qualquer racionalização do seu comportamento (nem do nosso olhar, importa acrescentar). Badii/Ershadi acaba por se impor como um aliado do próprio cinema, dessa capacidade insólita de registar o movimento da vida, pressentindo a nitidez indizível da morte.
Reecontramos, assim, a máxima acarinhada por Jean Cocteau: “O cinema filma a morte no trabalho”. Princípio difícil, sem dúvida. Porque as medidas dominantes do tempo não são de vida nem de morte, mas apenas de acumulação de clímaxes. É esse o método principal do espaço televisivo, todos os dias desmesuradamente ampliado pelos circuitos da Internet: o que mais conta é a criação de alguma vibração efémera, logo substituída por outra também de fugaz intensidade. Nesta perspectiva, a circulação dominante das imagens cedeu aos princípios e métodos da publicidade — Kiarostami é o contrário da publicidade, eis o mais justo retrato político que dele podemos fazer.

Sob o olhar de Raymond Depardon (2/2)

RAYMOND DEPARDON
Líbano — Beirute, guerra civil, um falangista cristão
1978
A exibição do filme 12 Jours, de Raymond Depardon, fica como um dos momentos altos da 18ª edição da Festa do Cinema Francês — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Outubro), com o título 'Ser ou não ser humano'.

[ 1 ]

As fotografias de Raymond Depardon na guerra civil do Líbano, em 1978, podem servir de padrão — estético e moral — da sua extraordinária visão. Por um lado, reconhecemos nelas um incontornável testemunho jornalístico; por outro lado, nunca, em nenhuma imagem, sentimos que a complexidade do real se fixa num qualquer “simbolismo” capaz de garantir uma qualquer manchete de vida efémera. Há, talvez, outra maneira de dizer isso: Depardon é um dos grandes humanistas das imagens contemporâneas, e tanto mais quanto o seu trabalho não depende dos “choques” visuais que alguma televisão todos os dias favorece.
Apresentado fora de competição, em Maio, no Festival de Cannes, o filme 12 Jours é uma expressão exemplar da sua visão do mundo, tendo ficado como um dos mais prodigiosos títulos desta edição do certame. O registo documental da situação jurídica dos pacientes de um hospital psiquiátrico envolve, necessariamente, a evidência da loucura e a extrema dificuldade (legal, antes do mais) de lidar com as suas manifestações individuais. O que distingue Depardon das abordagens correntes, mais ou menos especulativas, é que ele não utiliza os meios do cinema para ilustrar um “tema”. Porquê? Porque, justamente, filmar é deparar com as resistências, explícitas ou ocultas, do objecto eleito pelo olhar e pela câmara.
Não se pense, todavia, que isso resulta da complexidade “psicológica” do assunto tratado. Em boa verdade, Depardon tem filmado, por exemplo, a França rural com a mesma atenção expectante. Não para sobrepor a sua verdade àquilo que filma, antes enfrentando a suprema dificuldade de promover as imagens a uma prova definitiva de verdade — é, de facto, um trabalho interminável, da mais pura dedicação humana.

U2 na FNAC — três canções

Eis um breve resumo (audiovisual) da sessão SOUND + VISION, dedicada aos U2, na FNAC do Chiado:
I Will Follow, do álbum Boy (1980), primeiro teledisco da banda, dirigido por Meiert Avis;
Night and Day (Cole Porter), do projecto Red + Hot Blue (1990), video de Wim Wenders;
Ordinary Love, da banda sonora de Mandela: Longo Caminho para a Liberdade (2013), performance em The Tonight Show, de Jimmy Fallon, com a participação de The Roots.





sábado, outubro 21, 2017

A IMAGEM: Martin Parr, 2008

MARTIN PARR
Tenby, Gales
2008

U2: inocência e experiência
— SOUND + VISION Magazine [hoje]

Estaremos hoje, dia 21, na FNAC para uma sessão dedicada aos U2. Pretexto imediato: o lançamento do seu 14º álbum de estúdio, Songs of Experience, registo que "completa" o anterior Songs of Innocence (2014). Programa de trabalho: percorrer as quatro décadas de carreira da banda irlandesa, revisitando sons e imagens, canções e concertos.

* FNAC: Chiado, hoje (18h30)
* * * * *

>>> Lyric video de You’re The Best Thing About Me.

sexta-feira, outubro 20, 2017

Torres, opus 3

Vem de Nashville e foi uma das revelações de 2013, contava 22 anos: Torres, nome artístico de Mackenzie Scott, pratica um rock primitivo e poético, abstracto e eléctrico. Depois de quase dois anos de silêncio, este Verão deu a conhecer uma nova canção: Skim. Era o primeiro sinal do terceiro álbum, entretanto já lançado: chama-se Three Futures e é uma bela colecção de aventuras de estranha sensualidade — eis o teledisco do tema-título, assinado, tal como o anterior, por Ashley Connor.

I got hard in your car
In the parking lot of the Masonic lodge
We lined the Hudson with our tangents
You trusted me to love your parents

Sunk into my tunnel vision
Sunk into my tunnel vision

I hope that’s what you’ll remember
Not how i left but how i entered
Who didn’t know i saw three futures
One alone and one with you
And one with the love i knew i’d choose

You got me loaded on bergamot perfume
Downstairs in the TV room
You laid the plans and i was quiet

My eyes are trinity divided
My eyes are trinity divided

I hope what you will remember
Is not how i left but how i entered
And not the hope that i’d ?beast?
If we may bring some thing we do

You didn’t know i saw three futures
You didn’t know i saw three futures

One alone and one with you
And one with the love i knew i’d choose

Porto melodramático

* PORTO, de Gabe Klinger
[DN, 19-10-17]

Eis uma coprodução europeia (envolvendo Portugal, através da empresa Bando à Parte, de Rodrigo Areias) que escapa a muitos clichés “turísticos” que, não poucas vezes, assombram objectos deste género. Com realização do brasileiro Gabe Klinger, trata-se de expor o encontro amoroso de um americano (Anton Yelchin) e uma francesa (Lucie Lucas), tendo por pano de fundo cenários da cidade do Porto apresentados, através de um delicado tratamento fotográfico (assinado por Wyatt Garfield), como projecções sensuais dos estados de alma das personagens.
Das palavras confessionais às relações sexuais, Porto envolve-nos pelo tom melodramático, sempre apoiada no delicado trabalho dos actores. O filme é dedicado à memória de Anton Yelchin, falecido num acidente com o seu automóvel, em Junho de 2016, contava apenas 27 anos.

Marcelo e o povo

FOTO: Nuno André Ferreira / DN
FOTO: Nuno André Ferreira / SIC Notícias
1. Imagens como estas têm proliferado nos últimos dias: o Presidente da República visita as zonas afectadas pelos fogos, multiplicando encontros emocionados com pessoas que aí vivem e que, na maior parte dos casos, perderam familiares e ficaram com as casas e bens destruídos.

2. Não é fácil olhar para estas imagens, perguntando que iconografia é esta que estamos a viver — ou que nos obrigam a viver. E não é fácil porque o nosso pensamento corre o risco de ser sugado pelo determinismo com que muitos discursos televisivos contaminaram o espaço social. Que determinismo? O que leva a perguntar, por exemplo, a um jogador de futebol "que emoção sentiu" quando marcou o golo — como se a emoção fosse um objecto de descrição matemática e, pior do que isso, como se a emoção envolvesse uma verdade única e unívoca que ninguém pode recusar.

3. As coisas complicam-se um pouco mais porque, no limite, tal ideologia mediática nos pode empurrar para o cinismo que, hoje em dia, triunfa em muitos discursos jornalísticos. Na perspectiva de tais discursos, seria preciso perguntar: "o Presidente está ou não a sentir as emoções que exibe?".

4. Como falar disto? Talvez começando por contemplar (e admirar) a inteligência política de Marcelo Rebelo de Sousa. Deste modo, ele sabe que funciona como escape simbólico dos dramas que assombram o país, conseguindo, pelo menos, que as descargas afectivas que suscita se polarizem na sua própria figura, desse modo impedindo que as linguagens mediáticas dominantes se entreguem a uma qualquer acumulação de cenas histéricas sem objecto narrativo — ou cuja narrativa se esgota na produção de histerismo.

5. Mas o Presidente consegue um pouco mais do que isso. Subitamente, através dele, o significante povo reaparece nos circuitos de comunicação. Reaparece, literalmente: há muito desaparecido das argumentações políticas (a não ser, pontualmente, e de forma simplista, como signo de "militância" nos discursos do Partido Comunista), o povo que rodeia Marcelo expõe-se, subitamente, como entidade cuja existência — vida e morte — não pode ser negada.

6. Não é coisa secundária, tal evento. Desde logo, porque temos sido afogados na figuração populista do "povo" que, na mais completa impunidade, prolifera há 40 anos no espaço telenovelesco. Depois, porque nomear o "povo" serve, por vezes, apenas para lhe sobrepor alguma celebração do sucesso de quem é identificado pelas suas origens "populares", desse modo superando as "limitações" dessas mesmas origens — observe-se, a esse propósito, o discurso-padrão em torno do sucesso financeiro de Cristiano Ronaldo, organizado como telenovela "épica" da humildade das origens à acumulação dos milhões.

7. Agora, o povo chora, grita, sente angústia, indignação e revolta. Expõe, afinal, o supremo escândalo político: o de que não o conhecem, nem reconhecem, a não ser quando chegam os bombeiros e se instala a mágoa infinita de todas as perdas. Contra o cepticismo de muitos (a começar por mim), temos, agora, um Presidente que não se substitui demagogicamente ao povo, antes pergunta que lugar ele tem ou pode ter na paisagem social que somos e, com mais ou menos talento, tentamos construir — talvez consigamos, pelo menos, recuar a algo de primordial e contemplar o que há de povo em cada um de nós.

quinta-feira, outubro 19, 2017

Danielle Darrieux (1917 - 2017)

Actriz revelada nos anos 30, símbolo universal do cinema francês, Danielle Darrieux faleceu no dia 17 de Outubro, na sua casa de Bois-le-Roi, na Normandia — completara 100 anos a 1 de Maio.
Com formação musical adquirida no Conservatório de Paris, estreou-se no cinema no começo dos anos 30, tornando-se uma estrela a partir de Mayerling (1936), de Anatole Litvak, em que contracenava com Charles Boyer. Através de uma carreira de mais de uma centena de títulos rodados ao longo de oito décadas (considerada das mais longas em toda a história do cinema), trabalhou com várias gerações de actores e realizadores, mantendo também uma actividade paralela, sempre muito aclamada, no teatro.
Da sua passagem por Hollywood, O Caso Cícero (1952), com James Mason, sob a direcção de Joseph L. Mankiewicz, terá ficado como a referência mais forte. De qualquer modo, foi no regresso a França, graças a Madame De... (1953), de Max Ophüls, de novo com Charles Boyer e também Vittorio De Sica, que entrou definitivamente no Olimpo cinéfilo como símbolo exemplar de um romantismo utópico — aliás, sob a direcção de Ophüls surgira já em A Ronda (1950) e O Prazer (1952). Entre os filmes marcantes da sua carreira incluem-se ainda, por exemplo, Vermelho e Negro (1954), adaptação de Stendhal por Claude Autant-Lara, com Gérard Philipe, Napoleão (1955), de Sacha Guitry, e Landru (1963), de Claude Chabrol.
Embora não tendo sido um nome muito associado à Nova Vaga, Darrieux integrou o elenco do clássico As Donzelas de Rochefort (1967), de Jacques Demy. Distinguida com um César honorário em 1985, vimo-la ainda como perene imagem de alegria e drama, subtileza emocional e pressentimento trágico, em filmes como O Local do Crime (1986), de André Téchiné e 8 Mulheres (2002), de François Ozon. Nestes três títulos — e ainda na animação Persépolis (2007), de Marjane Satrapi — desempenhou o papel de mãe de Catherine Deneuve. Sobre ela, Deneuve disse um dia: "É a única mulher que me impede de ter medo de envelhecer."

>>> Extractos de Mayerling (1936), Madame De... (1953), As Donzelas de Rochefort (1967) — com Jacques Perrin a interpretar La Chanson de Maxence — e trailer de 8 Mulheres (2002); em último lugar, num registo televisivo de 1959, Danielle Darrieux interpreta Le Temps du Muguet, versão francesa de uma canção popular russa.










>>> Obituário no jornal Le Figaro.
>>> Memória fotográfica na revista L'Obs.

Ty Segall a cores

Não, não é uma imitação naïf da geometria colorida de Piet Mondrian. São as capas dos dois mais recentes singles do incansável Ty Segall, ainda e sempre a viver em paisagens que integram o país do punk e o arquipélago do psicadelismo. Este ano, Segall já nos tinha surpreendido com um álbum chamado... Ty Segall. Agora, o verde diz respeito a Alta, o amarelo a Meaning — recomenda-se vivamente, mesmo a daltónicos.



quarta-feira, outubro 18, 2017

Sob o olhar de Raymond Depardon (1/2)

A exibição do filme 12 Jours, de Raymond Depardon, fica como um dos momentos altos da 18ª edição da Festa do Cinema Francês — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (14 Outubro), com o título '“É preciso olhar as coisas que não queremos olhar"'.

Raymond Depardon é um dos mais bem guardados segredos do cinema francês: grande fotógrafo do nosso tempo, membro da agência Magnum há quase quatro décadas, é também um cineasta de subtil visão documental. 12 Jours, o seu filme mais recente (apresentado em Cannes, extra-competição), constitui um dos grandes acontecimentos da 18ª edição da Festa do Cinema Francês — dia 15 (19h30), no São Jorge, em Lisboa; dia 28 (19h30), no Rivoli, no Porto.
O projecto só foi possível graças ao apoio da Escola Nacional da Magistratura de Bordéus: “Se tivéssemos tentado fazer este filme em Paris, acho que não teríamos conseguido.” Porquê? Antes do mais, porque essa instituição recorre com regularidade a outros filmes do próprio Depardon, como Délits Flagrants (1994) ou 10e. Chambre (2004), sobre o funcionamento dos tribunais. Depois, porque aí encontrou a disponibilidade para documentar o modo como a lei lida com a loucura ou, mais exactamente, os pacientes que, sem o seu consentimento, foram hospitalizados em unidades de psiquiatria: “A magistratura tem-se escudado na ideia de que os loucos têm também direito à sua imagem. Nessa medida, duplicaram o sistema vigente nas prisões, o que, para todos os efeitos, é outra questão: na prisão, as pessoas perderam os direitos cívicos, o que não acontece no caso das personagens de 12 Jours — podem até votar e a sua assinatura é reconhecida como válida.”
Que está, então, em jogo? Precisamente os 12 dias que o título refere: de acordo com a legislação francesa, o internamento compulsivo é avaliado nesse período de tempo por um juiz que, tendo em conta os relatórios dos médicos, decide da eventual continuação desse internamento, determinando se a libertação do paciente envolve algum tipo de perigo (para os outros ou para si próprio).
Não é um filme de “suspense”, mas um estudo humanista. Depardon recorda a sua singular pedagogia: “Das 72 pessoas que filmámos, nenhuma obteve autorização para sair em liberdade. Talvez que o efeito positivo daquelas audiências tenha decorrido da própria presença do cinema, como se se dissesse a cada paciente: “ao ser filmado, você está a ser considerado”. Em qualquer caso, era algo que lhes fazia bem — mais do que uma consideração, um reconhecimento da sua existência”.
Como noutros momentos da sua trajectória (por exemplo, nos anos 70, quando fotografou um asilo em Itália), Depardon sabia que teria de enfrentar a acusação de “voyeurismo”. De facto, o que está em jogo é bem diferente e pode resumir-se no seu axioma profissional e ético: “É preciso olhar as coisas que não queremos olhar”. Aliás, acrescentando uma interrogação contundente, também ela muito pedagógica: “Porque é que as pessoas não falam de voyeurismo a propósito de tantas coisas que se vêem todos os dias na televisão?”
12 Jours foi também uma estreia técnica: pela primeira vez, Depardon utilizou câmaras digitais, equipadas com grandes e sofisticadas objectivas (apenas disponíveis através de aluguer a empresas de Los Angeles). E também não foi surpresa ouvir o espanto de algumas pessoas que recomendavam que filmasse com câmaras mais pequenas, ainda que de menor qualidade. “Já me tinham sugerido a utilização de um formato rudimentar quando filmei os ciganos em Profils: Paysans (2001-2008). Devo reconhecer que, curiosamente, quando se trata de ciganos ou loucos, há sempre quem ache que se deve filmá-los com um formato de menor qualidade. Ora, a minha perspectiva é completamente diferente: é preciso filmar aquelas pessoas da melhor maneira possível, como se fossem Brad Pitt ou Isabelle Adjani.”

segunda-feira, outubro 16, 2017

A herança dos irmãos Lumière

* LUMIÈRE!, de Thierry Frémaux
[DN, 05-10-17)]

Além de programador do Festival de Cannes, Thierry Frémaux tem desenvolvido, na qualidade de director do Instituto Lumière, em Lyon, uma importante actividade de gestão, preservação e restauro do património dos irmãos Lumière. Este filme é uma consequência directa do seu trabalho, sendo constituído por uma colagem de algumas dezenas de pequenos filmes de um minuto de duração (50 segundos, para sermos rigorosos), rodados pelos Lumière e seus operadores entre 1895 e 1905.
São matérias essenciais dos primeiros capítulos da história do cinema, devidamente contextualizados pelos comentários, em off, do próprio Frémaux. A nostalgia da descoberta envolve, assim, a pedagógica revelação das proezas dos Lumière, desde a arte do enquadramento até à subtileza de um olhar documental seduzido pelos mais diversos elementos de ficção.

domingo, outubro 15, 2017

King Krule: punk + hip hop + jazz

Archy Marshall, 24 anos, nascido em Londres — nome artístico: King Krule. Foi uma das grandes revelações de 2013 (portanto, aos 19 anos) e continua a convocar-nos para paisagens musicais de estranha e envolvente pluralidade: as suas raízes punk derivam constantemente para um austero hip hop, não poucas vezes à beira de uma secura típica de um tempo de spoken word, enfim, integrando ziguezagues, improvisados ou não, de genuína sensibilidade jazzística.
O novo álbum de King Krule, terceiro da sua conta pessoal — depois de 6 Feet Beneath the Moon (2013) e A New Place 2 Drown (2015), este assinado como Archy Marshall — chama-se The Ooz e já tinha sido apresentado através do tema Czech One. Vale a pena ler a entrevista dada à NPR, evocando algumas influências juvenis, de Nirvana a Jimi Hendrix, passando por Marvin Gaye (decididamente, o rapaz cuida da sua saúde musical) e também explicando a origem do título The Ooz. Entretanto, aqui fica o registo de mais duas canções: Dum Surfer e Half Man Half Shark.