terça-feira, outubro 31, 2017

Wim Wenders em Lisboa (1/3)

FOTO: Nuno Pinto Fernandes / DN
Wim Wenders é um militante defensor da diversidade do cinema e da cultura europeia, não se cansando de chamar a atenção para as exigências da nova conjuntura digital — esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (26 Outubro), com o título '“A herança cinematográfica europeia necessita de ser resgatada do esquecimento"'.

O cineasta alemão Wim Wenders foi distinguido com o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, atribuído pelo Centro Nacional de Cultura. Em cerimónia realizada na Fundação Gulbenkian, o prémio foi entregue pelo Presidente da República que, na mesma ocasião, o condecorou com o grau de comendador da Ordem do Mérito [DN, 24 Outubro]. Como disse Marcelo Rebelo de Sousa, Wenders “nunca foi estrangeiro em Portugal” — ele é, afinal, um cidadão da Europa com uma obra de viajante pela pluralidade cultural do nosso continente e também, mais do que nunca, apostado em enfrentar os desafios da era digital.

O Prémio Helena Vaz da Silva consagrou-o, não apenas como cineasta, mas enquanto personalidade do mundo da cultura europeia. Como encara tal distinção?
O que está em jogo é um certo empenho na Europa: a ideia de que necessitamos de algo para o futuro, algo que vem do passado e corre o risco de se perder. Não é, portanto, um prémio exactamente para mim, mas sim por aquilo que muitas pessoas estão a fazer, sendo eu apenas uma delas. Sou um empenhado europeu, filmei em toda a Europa e, quase involuntariamente, contribuí para preservar uma certa herança. Por exemplo, em Lisboa: filmei aqui no começo dos anos 80 [O Estado das Coisas], depois em 1990 [Até ao Fim do Mundo] e ainda em 1994 [Lisbon Story].

Que herança é essa?
A noção de herança é algo estranha: pode sugerir uma certa ideia de museu, mas não é disso que se trata — a herança é algo que diz respeito ao nosso futuro.

Na defesa dessa herança, qual a importância da Academia Europeia de Cinema a que preside?
Defendemos algo que não pode ser dado como adquirido. O cinema europeu está a ser atacado por uma indústria muito mais poderosa. É um cinema frágil, feito por países muito diferentes, mas o seu conjunto representa um valor fundamental: a nossa própria diversidade. E está a desaparecer. Quase tudo o que eu fiz há 40 anos está a desaparecer, a não ser que seja preservado, ajudando os filmes a entrar na nova idade digital. Hoje em dia, se um determinado filme apenas existe numa cópia em película, esse filme está morto — para viver, necessita de ser transferido para digital e, desse modo, aceder a várias plataformas. Grande parte da nossa herança necessita, assim, de ser resgatada do esquecimento.

Diz-se, por vezes, que há uma relação fraca dos espectadores mais jovens com os filmes europeus — concorda com esse ponto de vista?
Em muitos casos sim, é uma triste verdade. Mas também é verdade que onde quer que haja uma sala e pessoas empenhadas em mostrar cinema europeu devidamente contextualizado, os jovens mostram-se interessados, até mesmo entusiasmados. É fundamental educar os jovens para o cinema, começando nas escolas porque é a nossa herança que está em jogo. Há muitos jovens que cresceram sem a conhecer: ensinamos-lhes literatura ou pintura, mas não lhes ensinamos a arte mais ameaçada que temos, a arte das imagens em movimento.

Em vários dos seus filmes, como O Amigo Americano, Paris, Texas ou Terra da Abundância, encontramos uma relação forte com a cultura americana. Como avalia o peso dessa relação no seu universo criativo?
Cresci admirando a cultura americana, porque cresci num país destruído — a Europa não passava de uma ficção. A certa altura, era mais difícil ir à outra metade da Alemanha do que ir à Lua. A América era uma bela utopia, imensa e livre, reflectida na beleza do seu cinema. Não havia cinema no meu país e, de facto, só mais tarde vim a conhecer Fritz Lang ou Murnau. A América apaixonava-me, não necessariamente através das ideias, mas pelo espírito, pela grandeza, pelas imagens que de lá chegavam. Aliás, não nos podemos esquecer que o cinema americano é, em grande parte, uma invenção de europeus, a começar pelos anos 20 e 30. No meu caso, foi depois disso que aprendi a admirar as minhas origens europeias, descobrindo cineastas como Bergman, Truffaut ou Godard.

[continua]