segunda-feira, outubro 30, 2017

O cinema reinventa Van Gogh

A Paixão de Van Gogh
(2017) 
A Paixão de Van Gogh é um acontecimento do cinema de animação que, em boa verdade, transcende as suas fronteiras — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Outubro), com o título 'Reinventando Van Gogh em desenhos animados'.

Foi já há mais de vinte anos, em 1995, que o filme Toy Story, dos estúdios Pixar, revolucionou a nossa percepção dos desenhos animados em cinema: a primeira longa-metragem de animação totalmente executada com o recurso a computadores abriu um novo capítulo numa saga que, até aí, tinha os estúdios Disney como protagonistas (curiosamente, em 2006, a Pixar viria a ser adquirida pela Disney).
Agora, com A Paixão de Van Gogh, não estaremos perante um fenómeno da mesma escala, até porque não há comparação possível com o poder promocional da Pixar/Disney. O certo é que este filme co-realizado por uma polaca, Dorota Kobiela, e um inglês, Hugh Welchman, entra na história também como um objecto pioneiro: trata-se da primeira longa-metragem totalmente criada a partir de imagens a óleo.
Importa, em qualquer caso, não encarar o acontecimento como uma espécie de novo momento “zero” na história da própria animação. Isto porque A Paixão de Van Gogh nasce de um sugestivo cruzamento com a rotoscopia, um dos mais primitivos processos de animação (concebido há cem anos por Max Fleischer, animador americano nascido na Polónia), envolvendo a criação de desenhos a partir de imagens previamente filmadas, permitindo reproduzir, por exemplo, os gestos e movimentos dos actores.
Assim aconteceu na gestação de A Paixão de Van Gogh. Mais de uma centena de desenhadores trabalharam a partir de uma dupla estratégia figurativa. Por um lado, foram registadas acções com actores, incluindo Robert Gulaczyk no papel do pintor e outros assumindo várias pessoas que encontramos nos seus quadros — por exemplo, Jerome Flynn, Saoirse Ronan e Douglas Booth, respectivamente como o Dr. Gachet, Marguerite Gachet e Armand Roulin (este tratado como “narrador” do filme). Por outro lado, os espaços dessas acções foram desenhados a partir dos próprios quadros de Van Gogh, incluindo os célebres “Terraço do Café à Noite” e “Quarto em Arles”, ambos de 1888.
Quarto em Arles
(1888)
Apetece definir os resultados como uma espécie de “pintura em movimento”. E assim é, sem dúvida — não será preciso o espectador ser especialista em Van Gogh para ir detectando linhas, cores e enquadramentos que há muito pertencem a um certo imaginário popular da pintura. Ao mesmo tempo, porém, o filme vai cumprindo um programa dramático apostado em resistir aos estereótipos “psicológicos” que, não poucas vezes, condicionam a representação do pintor — central no argumento é mesmo a discussão das condições dúbias em que ocorreu o seu suicídio.
Nesta perspectiva, podemos considerar A Paixão de Van Gogh como um trabalho cúmplice de obras de excepção que já trataram a personagem, incluindo A Vida Apaixonada de Van Gogh (1956), do americano Vincente Minnelli, e Van Gogh (1991), do francês Maurice Pialat.
Será que A Paixão de Van Gogh poderá funcionar como momento fundador de um novo capítulo da animação? Claro que a abordagem crítica de um filme não envolve o dom da “profecia”. Em todo o caso, registe-se que o filme obteve já este ano o prémio do público no Festival de Annecy, em França, reconhecido como um dos mais importantes certames no sector da animação cinematográfico. E sublinhe-se também o especial cuidado com que está a ser tratada a sua exibição nas salas dos EUA. O eventual impacto americano de A Paixão de Van Gogh poderá mesmo ser um trunfo decisivo para a temporada de prémios e, no limite, para a obtenção de uma nomeação para o Oscar de melhor longa-metragem de animação.
Auto-retrato
(1889)