terça-feira, janeiro 31, 2017

"La La Land" — musical ou virtual?

A RODA DA FORTUNA (1953)
Cyd Charisse e Fred Astaire
De que falamos quando falamos de La La Land? Será que o filme sustenta as inevitáveis comparações com os clássicos? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 Janeiro), com o título 'O musical da nossa era virtual'.

Será possível comparar La La Land com a tradição clássica do musical de Hollywood, de Serenata à Chuva (1952) a West Side Story (1961), passando por A Roda da Fortuna (1953) ou Brigadoon (1954)? Lamento, mas não vejo como tal seja possível. E não só porque tal tradição se enraizava nos valores técnicos e artísticos de um sistema de produção que deixou de existir (por alguma razão conhecido como studio system). Também porque Damien Chazelle confunde a prática pueril da citação com a construção de uma narrativa.
As limitações de execução do filme ficam patentes logo na cena de abertura, no meio do trânsito de Los Angeles. Para além do academismo da coreografia, Chazelle regista tudo através dessa “estética de telemóvel” (triunfante nos dias que correm, é um facto) em que a agitação da câmara tem como primeiro efeito dificultar a própria percepção daquilo que nos é apresentado. Além do mais, mesmo que a opção seja algo irónica, não é fácil construir um par romântico (e musical) quando a agilidade dançante de Emma Stone e Ryan Gosling é muito limitada e ambos, sobretudo ele, cantam de forma muito aplicada, mas sem alma.
Provavelmente, no imaginário revivalista de Chazelle, tais limitações não constituem um problema, antes definem um método: para ele, a memória simbólica do cinema esgota-se no fingimento “à maneira de”. Na sua primeira longa-metragem, Whiplash (2014), para encenar a arte (?) de um baterista, ele achava mesmo que exibi-lo com as mãos em sangue era uma forma triunfal de exaltação do espírito do jazz... Ainda hoje me espanto como tal obscenidade simbólica não ofendeu os especialistas do jazz (mas esse é um problema meu).
Acontece que La La Land é um produto muito directo e, à sua maneira, muito genuíno e sincero (não é isso que está em causa) de uma nova cultura “cinéfila” construída a partir de uma visão fragmentada e fragmentária das próprias tradições que evoca e invoca. O conhecimento virtual (um fragmento, outro fragmento, um link, uma multidão de links) tende a satisfazer-se com a prática quotidiana da simulação.
No seu livro Amérique (Grasset, 1986), Jean Baudrillard dizia que os americanos vivem em permanente hiper-realidade, ignorando a própria simulação em que se movimentam: “São a configuração perfeita da simulação, mas não conhecem a sua linguagem, já que são a sua encarnação”. Tal estética do simulacro é igualmente importante para compreendermos Damien Chazelle ou Donald Trump. O autor de La La Land é, bem entendido, mais interessante.

>>> Trailer de West Side Story.


>>> Ensaios sobre o género musical no site da PBS.

"La La Land" — que futuro para o musical?

BRIGADOON (1954)
Gene Kelly e Cyd Charisse
Uma nova idade do musical graças a La La Land? Será preciso ver para crer — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Janeiro), com o título 'Será possível um renascimento do musical?'.

Quem diria que, no começo de 2017, haveria em Hollywood cerca de duas dezenas de filmes musicais em fase de pré-produção ou rodagem? Desde a adaptação de sucessos da Broadway, como Wicked, até uma nova versão do clássico Mary Poppins, o género musical vai ter, no mínimo, uma muito maior visibilidade no mercado global.
Embora não seja o único factor a ter em conta, o sucesso comercial de La La Land não pode ser desligado deste fenómeno. Afinal de contas, o filme de Damien Chazelle custou “apenas” 30 milhões de dólares (orçamento típico, em contexto americano, de um sólido projecto independente), tendo acumulado, para já, 140 milhões de dólares de receita global. Resta saber se poderá renascer uma ligação do público com o musical, na certeza de que a esmagadora maioria dos espectadores já nasceu depois da respectiva idade de ouro.
Pensemos nas coreografias clássicas de Busby Berkeley, por exemplo em As Goldiggers de 1935 (1935). Ou no encontro de Frank Sinatra, Gene Kelly e Kathryn Grayson em Paixão de Marinheiro (1945), de George Sidney. Ou nos bailados de Fred Astaire e Cyd Charisse em A Roda Fortuna (1953), de Vincente Minnelli. Ou ainda em Gene Kelly e outra vez Cyd Charisse em Brigadoon (1954), de novo com assinatura de Minnelli. O que liga tais filmes não é apenas a “curiosidade” de serem cantados e dançados, mas sim um sólido conceito de produção, profundamente enraizado no sistema clássico de Hollywood.
Os novos filmes serão melhores ou piores... O certo é que a possibilidade de um renascimento do musical envolve uma transformação dos mercados, no mínimo, difícil de conceber. Isto porque, nas últimas duas décadas, grande parte das receitas de Hollywood têm sido sustentadas por uma ideologia promocional em que (para o melhor e, sobretudo, para o pior) os valores mais fortes são os “super-heróis” e os “efeitos especiais”.
Mesmo ficando por musicais do século XXI, convém não esquecer os desastres comerciais de títulos como Nove (2009), de Rob Marshall, A Idade do Rock (2012), de Adam Shankman, ou ainda o admirável Jersey Boys (2014), de Clint Eastwood. Neste contexto, o impacto de La La Land constitui uma excepção, apenas contrariada pelo sucesso de muitos desenhos animados que envolvem importantes componentes musicais. Aliás, nestes casos, o que persiste é um modelo de espectáculo — o filme de animação — que, com ou sem música, nunca desapareceu das salas de cinema.

Ver + ouvir: Planctus
por Natalie Merchant e Philip Glass



O compositor Philip Glass compôs, em 1997, a canção Planctus, baseada num texto tradicional do século XVII em latim. A canção foi criada para a voz de Natalie Merchant, antiga vocalista dos 10.000 Maniacs. Planctus teve então estreia no Carnegie Hall. O tema conheceu depois nova versão no álbum de 2008 Tara Hugo sings Philip Glass, da cantora Tara Hugo.

Nos 80 anos de Philip Glass

Hoje, no dia em que se celebram os 80 anos de Philip Glass, o Carnegie Hall, em Nova Iorque, a assinala a data com a estreia mundial da sua Sinfonia Nº 11, interpretada pela Bruckner Orchester Linz, sob direção de Dennis Russell Davies, num programa que inclui ainda Days and Nights in Rocinha e Ifé: Three Yorúbá Songs, esta última uma colaboração do compositor com a cantora Angélique Kidjo.

De 1 a 8 de fevereiro o Carolina Performing Arts (UNC Chapel Hill) apresenta "Glass at 80," uma celebração da obra de Glass e do seu impacte na música e na vida intelectual, com um programa que inclui as presenças de colaboradores seus como Lucinda Childs, Laurie Anderson e o Kronos Quartet. Em Nova Iorque, o National Sawdust (Brooklyn) vai ter uma série de programas ao longo do ano sob a desigação Phil@80, que inclui, a 24 de fereveiro, The Complete Piano Etudes por Maki Namekawa. Em Manhattan, o Carnegie Hall (que como acima se refere estreia hoje a Sinfonia nº 11) vai ter Glass na cadeira do compositor ao longo da temporada, anunciando-se atuações com a Pacific Symphony Orchestra (com Anoushka Shankar), da Louisiana Philharmonic, de Nico Muhly, do Philip Glass Ensemble e da American Composers Orchestra.

Em junho o Opera Theater of Saint Louis vai apresentar a estreia americana da ópera The Trial, com encenação de Michael McCarthy, uma produção da Royal Opera de Londres, quando ali foi apresentada em 2014.

Nos discos, para já, e assinalando o 30º aniversário do Concerto para Violino nº 1, a Orange Mountain Music (editora do próprio Glass) edita uma nova gravação com o virtuoso Renaud Capuçon e a the Bruckner Orchester Linz, dirigidos por Dennis Russell Davies.

As elegias de Theo Bleckmann


Com uma já vasta obra em disco que recua ao início dos anos 90 Theo Bleckmann conquistou atenções maiores (chamando novos públicos para além dos mais atentos seguidores do jazz) através de uma série de edições que lançou através da Winter & Winter entre 2006 e 2012. Durante essa meia dúzia de anos tanto visitou o repertório de musicais como mergulhou entre as canções de Charles Ives ou fez de Hello Earth! - The Music of Kate Bush (2012) uma espantosa viagem através de canções de Kate Bush.

O caráter raro do timbre e das capacidades de desenho melódico do seu canto chamaram atenções, sobretudo junto de quem procura qualidades diferentes e desafiantes na voz. Meredith Monk chamou-o a dois discos seus: Mercy (2002) e Impermanence (2007). E mais recentemente a pianista Julia Hülsmann partilhou consigo o álbum A Clear Midnight (Kurt Weill And America) (2015). Destas três colaborações com o catálogo da ECM nasceu uma nova etapa de trabalho da qual este seu disco é um primeiro exemplo, representando assim este novo Elegy a estreia, em nome próprio, do cantor na etiqueta alemã.

Theo Bleckmann não está só em Elegy. Conta aqui com a colaboração de Shai Maestro (piano), Ben Monder (velho colaborador seu, na guitarra), Chris Tordini (contrabaixo) e John Hollenbeck (bateria), a "ambient band" como o cantor lhe chama. O álbum inclui sobretudo composições suas, mas junta uma espantosa abordagem a Comedy Tonight de Stephen Sondheim que nos recordam da excelência de incursões anteriores por territórios semelhantes. Elegy, por onde se cruzam canções e peças instrumentais que abordam os espaços da morte e da transcendência, é um disco que parte também para além das fronteiras do jazz, embora não lhe queira fugir. E basta escutar a belíssima canção "ambient" que se apresenta em To Be Shown to Monks at a Certain Temple para reconhecer como confluem aqui experiências, memórias, referências, que depois buscam o seu caminho segundo a liberdade que a voz concede à interpretação e o ensemble depois tão bem sabe seguir. Um contraste semelhante habita no confronto entre as qualidades fúnebres das temáticas e as tonalidades luminosas com que as composições depois tudo transformam. E, sim, a voz de Theo Blackman é aqui a razão que tudo une e faz corpo coerente.

"La La Land" — musical, que musical?

De que se faz, ou pode fazer, um musical? — esta nota foi publicada no Diário de Notícias (26 Janeiro).

Damien Chazelle é um cineasta de ideias simples, sempre à beira do simplismo. Em Whiplash (2014), parecia mesmo acreditar que a figuração de um baterista com as mãos a sangrar nos faria descobrir a essência mítica do jazz... Agora, com La La Land, por certo tendo estudado afincadamente os clássicos de Gene Kelly, Fred Astaire ou Syd Charisse, apresenta uma exuberante imitação dos musicais dos anos 40/50 que possui a limitação conceptual de todas as cópias: confundir a duplicação “formal” com a reinvenção do espírito de uma forma específica de espectáculo. O seu projecto vale pelo desafio de formular a hipótese de Hollywood reencontrar a mitologia de uma das suas mais lendárias matrizes de espectáculo — resta saber se isso é sequer possível num tempo em que os modelos de produção dessas matrizes deixaram de existir.

Japandroids, opus 3

Afinal de contas, o seu primeiro álbum, Post-Nothing (2009), avisava-nos para as ilusões apressadas de modernismos e afins. E o segundo, para evitar confusões, apresentava-se como Celebration Rock (2012). Dito de outro modo: os Japandroids não andam aqui para enganar ninguém e, à terceira vez, para quem pudesse ainda não ter percebido, a aventura dá pelo nome épico e sensual de Near to the Wild Heart of Life [em escuta: NPR].
Brian King (guitarra, voz) e David Prowse (bateria, voz), canadianos de Vancouver, praticam, afinal, um rock primitivo e sagaz, geométrico e... romântico. São mesmo capazes de construir um monumento de ruído e harmonia a partir de uma simples quadra:

From every day at dawn
Through to the dead of night
I'm sorry for not finding you sooner
I was looking for you all my life

segunda-feira, janeiro 30, 2017

Rui Santana Brito — uma memória

[Cinemateca]
A notícia da morte de Rui Santana Brito (1944-2017) relança-me, necessariamente, na memória da Cinemateca do começo da década de 80. Tal como o Rui, pertenci ao grupo de pessoas que, ao longo dessa década, teve o privilégio de participar na definição e consolidação da Cinemateca na Rua Barata Salgueiro — ainda com Félix Ribeiro na direcção, depois com Luís de Pina e João Bénard da Costa.
Face à frieza implacável da notícia e às emoções que arrasta, gostaria apenas de deixar um nota, uma espécie de esquemático "cartão de cidadão" do Rui. Ele distinguiu-se sempre como um genuíno e muito primitivo cinéfilo (nesta coisas, a genuinidade implica uma obstinada postura ancestral). Ou seja: identificar, organizar, arquivar não eram, para ele, banais tarefas de acumulação. Tratava-se — trata-se sempre — de construir um edifício de referências e objectos que nos levem a compreender e respeitar o cinema como história.
Nestes tempos tristes, em que a velocidade da televisão tende a obliterar o simples gosto de conhecer, essa é uma herança fundamental: conhecer os filmes envolve a disponibilidade para sentir como o presente em que sempre os encontramos é feito de muitas camadas de muitos passados e, não tenhamos dúvidas, de outros tantos futuros que só podemos pressentir. Para além de qualquer definição profissional, o Rui era um nobre espectador — saber ver e escutar, eis a questão.

Os Óscares, o filme musical
e três homenagens
hoje às 18.30 na Fnac Chiado


A apresentação dos nomeados para a atribuição dos Óscares este ano é o motivo para a proposta que hoje apresentaremos em mais uma edição do Sound + Vision Magazine (pelas 18.30 na Fnac Chiado). E já que o filme La La Land, de Damien Chazelle, parte com 14 nomeações e se fala tanto de cinema musical, é por aí mesmo que vamos andar... Pelas imagens e canções do cinema musical.

Além disso haverá ainda espaço para recordar alguns nomes recentemente desaparecidos, como os atores John Hurt e Emanuelle Riva e, ainda, o cantor George Michael, de quem uma reedição histórica está a caminho.

Em memória de David Bowie


Sobretudo referido como autor da série The Disintegration Loops (que nasceu como evocação dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001), William Basinki é uma figura que não se fecha num canto da invenção musical. Compositor, manipulador de sons, clarinetista (de formação clássica), saxofonista e com obra também feita nos domínios da vídeo art, acaba de acrescentar à sua obra A Shadow in Time, disco que se apresenta como uma homenagem a David Bowie.

A primeira das duas (longas) faixas que aqui encontramos deixa clara, logo no título, a elegia que aqui se desenha: For David Robert Jones. Ali mergulhamos numa homenagem que se desenha, gradualmente, através da manipulação de loops de velhas fitas gravadas (ao que parece parcialmente mastigadas pelo seu gato), aos quais se junta um saxofone, também distante e sujo, que irrompe aos seis minutos entre a paisagem feita de drones, transportando-nos para uma evocação do clássico Low. As fitas manipuladas, sugerem vozes que escutamos distantes, como que fantasmas de quem já não está entre nós, sugerindo-se assim afinidades entre ideias presentes nesta composição e as reflexões de Basinski sobre as suas fitas em finais de 2001 que depois fizeram história. Esta peça foi originalmente encomendada em 2016 por uma galeria de Los Angeles como tributo em memória de Bowie.

A segunda faixa, que dá título ao disco, segue caminhos mais abstratos, definindo também uma experiência por entre uma paisagem de linhas difusas, sem limites evidentes, mas de familiaridade evidente para com as cenografias da faixa que abre o alinhamento.

Sylvan Esso: mais electricidade

A cantora Amelia Meath e o produtor Nick Sanborn aliaram-se sob o cognome de Sylvan Esso — tínhamo-los identificado, aqui, através de Coffee, single do álbum (homónimo) de estreia, lançado em 2014. O seu mais recente single, Kick Jump Twist, surge através de um magnífico teledisco, demonstrando que mesmos as electrónicas mais abstractas são variações geométricas sobre a pose do corpo humano — a realização pertence a Mimi Cave.

domingo, janeiro 29, 2017

O nosso Trump televisivo

THE APPRENTICE [EUA]
Como lidar com a afronta de Donald Trump sem pensar o papel social, simbólico e político do espaço televisivo? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 Janeiro).

Eis um fenómeno global, por certo com nuances. E também com importantes excepções. Mas que funciona a partir de uma regra audiovisual: as televisões tendem a dramatizar qualquer questão até ao máximo maniqueísmo. Exemplo do futebol: a “obrigação” de escolher o melhor jogador do mundo entre Lionel Messi e Cristiano Ronaldo... Como se não víssemos todos os dias dezenas de outros, igualmente brilhantes, a mostrar o seu talento.
O que está a acontecer com Donald Trump constitui um processo revelador dessa filosofia comunicacional. Não apenas da percepção dominante do universo político, mas também do facto de as suas configurações televisivas, longe de serem meros elementos “descritivos”, se terem tornado uma componente vital da (des)politização dos espectadores — isto é, de cada um de nós.
Que está, então, a acontecer? Há cerca de um ano, o planeta televisivo apresentava Trump como uma figura irrisória, apelando apenas à anedota. Que o espaço televisivo se esqueça disso mesmo, eis o que diz bem da ideologia que o domina: o seu valor fundamental é a criação de clímaxes mais ou menos efémeros (“apanhados”, em boa verdade), procurando sempre novas variações sem qualquer relação entre si. Agora, Trump deixou de ser um “palhaço” mais ou menos ridículo, passando a surgir muitas vezes como uma ameaça que importa “denunciar”.
Apontar esta contradição não decorre de qualquer canonização do magnate que se tornou Presidente. Trata-se apenas de reconhecer que os extremismos do espaço televisivo favorecem uma visão crispada e simplista, não apenas da política, mas de qualquer actividade humana.
Em boa verdade, através de tal crispação, o principal beneficiado é o próprio Trump. Afinal de contas, enquanto personagem ligada à mediocridade da “reality TV” (no programa The Apprentice, na NBC), ele foi apurando as técnicas que, ingenuamente, agora são aplicadas “contra” ele. A saber: alimentar uma permanente sugestão de conflito, esvaziando a televisão de qualquer pensamento e impondo-lhe uma lógica quotidiana de “tribunal”.
Pode a televisão ajudar a pensar? E pensar-se como algo mais do que uma teia de soundbytes? Lembremos apenas que tem sido Hollywood a mostrar-nos que sim. Recorde-se o notável exemplo de Boa Noite, e Boa Sorte (2005), de e com George Clooney, evocando a saga de Edward R. Murrow (interpretado por David Strathairn) e do colectivo de jornalistas da CBS que, em 1953, souberam expor as imposturas do “maccartismo”. O filme era a preto e branco, mas o pensamento não.

Deputados [citação]

>>> Quem pensa que a crispação está a diminuir e que o ambiente está a ficar sereno deveria ver os debates parlamentares. E suas excelências, deputados e governantes, deveriam também ver, em cafés, a maneira como a assistência olha, comenta e muda de canal. Se julgam que todos torcem pelos seus deputados e pelo seu partido com o frenesim de quem veste a camisola, estão muito, mas mesmo muito enganados. Estes debates parlamentares, feitos para "aprofundar a democracia", "garantir a transparência" e "aproximar a política dos cidadãos", estão a ter o efeito exactamente oposto.
Em certos dias ganham uns. Noutros dias ganham os outros. Mas, todos os dias, perdemos nós.

ANTÓNIO BARRETO
'A culpa'

Emmanuelle Riva (1927 - 2017)

Foi uma das musas da Nova Vaga francesa: a actriz Emmanuelle Riva faleceu no dia 27 de Janeiro, em Paris, vítima de cancro — contava 89 anos.
Provavelmente, para a maior parte dos espectadores mais jovens, ela é apenas a mulher de Amor (2012), o filme de Michael Haneke que lhe valeu um César e uma nomeação para o Oscar de melhor actriz. O certo é que Riva se estreou em 1959, com dos "filmes-bandeira" da Nova Vaga francesa: Hiroshima, Meu Amor — uma viagem exterior e interior à cidade de Hiroshima, habitada pelas memórias trágicas da bomba atómica, filmada por Alain Resnais a partir de um argumento escrito por Marguerite Duras.
Entre os seus títulos mais importantes incluem-se ainda Kapò (Gillo Pontecorvo, 1960), sobre uma rapariga judia que lidera uma tentativa de fuga de um campo de concentração, O Pecado de Teresa (Georges Franju, 1962), drama baseado no romance Thérèse Desqueyroux, de François Mauriac, Liberté, la Nuit (Philippe Garrel, 1984), uma viagem intimista em que contracenava com Maurice Garrel, e Azul (Krzysztof Kieslowski, 1993), primeiro capítulo da 'Trilogia das Cores' — em todos eles deixou os sinais de uma presença de delicada beleza e infinita complexidade emocional.

>>> Trailer da versão restaurada de Hiroshima, Meu Amor, em 2013; discurso de agradecimento do César por Amor.




>>> Obituário na revista Le Point.
>>> Sobre Hiroshima, Meu Amor [Criterion].
>>> Perfil/entrevista em The Guardian.

sábado, janeiro 28, 2017

Em memória de John Hurt



Data de 2003 e serviu então a apresentação daquele que representou na altura o ponto final numa etapa de vida dos Suede, que só regressariam aos discos dez anos depois. O single Attitude foi acompanhado por um teledisco, realizado por Lindy Heymann, no qual Brett Anderson, o vocalista da banda, cede o protagonismo ao ator John Hurt.

Pop: a arte da reinvenção


Em inícios dos anos 90 um dos desafios que se colocavam à canção pop era o de procurar novas formas e referências a assimilar, assegurando mais um episódio da sua constante reinvenção. Os acontecimentos que a club culture e as novas expressões da cultura urbana tinham trazido à tona das atenções em finais dos anos 80, levando fenómenos como a house (e seus derivados), novas reinvenções da soul e o hip hop a novos patamares de visibilidade, haviam já marcado claramente os terrenos indie rock, com bandas como os Stone Roses, Happy Mondays ou Primal Scream a refletir nas suas novas gravações essas mesmas presenças. Em espaço pop uma reflexão semelhante fazia-se então através de nomes como os Beloved, os Deee-Lite, os Pet Shop Boys (que traziam já louros conquistados nos 80s mas mantiveram-se na linha da frente desta manifestação) e os Saint Etienne. 

Estes últimos, nascidos em 1990, apresentavam-se inicialmente como um projeto de dois jornalistas que trocavam a escrita pelas canções e que se propunham a chamar uma nova voz a cada novo single. Começaram por se mostrar com uma magnífica versão de Only Love Can Break Your Heart (original de Neil Young), com a voz de Moira Lambert. Pouco depois convidavam Donna Savage para cantar em Kiss and Make Up, uma versão de um tema dos Field Mice. Mas quando, ao terceiro single, Nothing Can Stop Us, o seu primeiro original, encontram Sarah Cracknell, o grupo dá uma cambalhota. De dupla com convidados para cantar passam a trio de alinhamento fixo. O álbum de estreia, que editam por essa altura, retrata precisamente esse momento de transição. E de verdadeira epifania pop.

A presença da cultura house (e de algumas das suas variações então em voga) está bem evidente entre as canções de Fox Base Alpha. Tal como o está a assimilação do sampling como ferramenta cénica fulcral (ajudando, por exemplo, a construir momentos de ligação entre as faixas), num quadro de elementos em jogo que traduzem uma atenção pelo state of the art das coisas pop de então. É contudo em Nothing Can Stop Us, o tal momento “eureka” com a voz de Sarah Cracknell, que o grupo encontra a outra valência estrutural na definição da sua identidade: uma carga retro devidamente assimilada que procurava assim trazer à pop dos noventas ecos do festim de luzes, cores e imagens da swinging London dos sessentas. Fox Base Alpha é, em todas as frentes, o retrato deste conjunto de felizes encontros, representando o primeiro episódio numa discografia que somou depois inúmeros álbuns e singles que dos Saint Etienne ajudaram a fazer uma das discografias pop mais gourmet do seu tempo.

O álbum acaba de conhecer uma reedição em vinil que junta ao disco original (aqui apresentado em dois discos, a 45 rotações), o complemento Remains of The Day, um álbum inteiro feito de temas gravados naqueles dias (já disponível na reedição Deluxe em CD editada em 2016), assim como um single de sete polegadas com o tema Kiss and Make Up na voz de Moira Lambert. Há depois um booklet e uma pequena multidão de extras gráficos. Um mimo para admiradores. E ao mesmo tempo uma afirmação de que aqui está, de facto, uma peça de referência da pop dos noventas.

sexta-feira, janeiro 27, 2017

Mary Tyler Moore (1936 - 2017)

Actriz emblemática da televisão americana, pioneira na transformação da imagem mediática das mulheres ao longo das décadas de 60/70, Mary Tyler Moore faleceu no dia 25 de Janeiro, na sequência de problemas respiratórios — contava 80 anos.
Começou na televisão na década de 50, vindo a tornar-se muito popular através da sua participação em The Dick Van Dyke Show (1961-66). O sucesso permitiu-lhe avançar com The Mary Tyler Moore Show (1970–77), uma sitcom no cenário de uma redacção televisiva. Embora com uma carreira predominantemente televisiva, participou em produções cinematográficas como Millie, Rapariga Moderna (George Roy Hill, 1967), Gente Vulgar (Robert Redford, 1980), que lhe valeu uma nomeação para o Oscar de melhor actriz, ou Flirting with Disaster (David O. Russsel, 1996).  Nos anos 80, produziu ou interpretou vários espectáculos na Broadway. Publicou dois livros de memórias: After All (1995) e Growing Up Again (2009).

>>> Trailer de Gente Vulgar e evocações de Mary Tyler Moore no New York Times e na ABC.






>>> Obituário na Rolling Stone.

quinta-feira, janeiro 26, 2017

quarta-feira, janeiro 25, 2017

Tele-realidade [citação]

25 Jan. 2017
>>> Que Trump seja um antigo animador da tele-realidade, eis o que torna a sua desenvoltura, afinal, bastante lógica: ninguém acreditou alguma vez que esse género de espectáculo estabeleça a mais pequena relação com a "realidade". Aí, tudo é construído e narrado para gerar audiência: para além da indigência dos diálogos, a única originalidade deste espectáculo é que pretende fazer esquecer que é teatro aumentando a sua teatralidade. Nenhum espectador se deixa enganar, mas olham ainda assim.

MICHAËL FOESSEL
'Depois da verdade?'

terça-feira, janeiro 24, 2017

"La La Land" na terra do "Silêncio"

A ironia dos Oscars pode ser muito cruel.
Por um lado, o filme de Damien Chazelle, La La Land, evoca a terra (land) no seu título, embora o sedutor maniqueísmo da sua performance musical (la la) o afaste, ingloriamente, de qualquer enraizamento material. Em boa verdade, a Los Angeles de Chazelle é uma ilusão conceptual que vive apenas da invocação de referências como Rebel Without a Cause (1955) e do seu emblemático Observatório Griffith — o balanço são 14 nomeações para o pós-modernismo a canibalizar, com alegria (?), as suas mais coloridas fraquezas.
Por outro lado, Silêncio, de Martin Scorsese, um exercício em que a afirmação da transcendência (cristã e ocidental) se confronta com a crueldade de uma outra terra (Japão), fica tratado como uma derivação "estilística" — uma-nomeação-uma para a direcção fotográfica de Rodrigo Prieto.
Enfim, um panorama desconcertante (e interessante), que vale a pena seguir nas suas implicações cinéfilas e simbólicas. Para já, os nove nomeados para melhor filme são:

* ARRIVAL / O Primeiro Encontro
* FENCES / Vedações
* HACKSAW RIDGE / O Herói de Hacksaw Ridge
* HELL OR HIGH WATER / Custe o que Custar
* HIDDEN FIGURES / Elementos Secretos
* LA LA LAND / Melodia de Amor
* LION / A Longa Estrada para Casa
* MANCHESTER BY THE SEA / Manchester by the Sea
* MOONLIGHT / Moonlight

Eis os títulos com maior número de nomeações:

* 14: LA LA LAND
* 8: ARRIVAL + MOONLIGHT
* 6: HACKSAW RIDGE + LION + MANCHESTER BY THE SEA
* 4: FENCES + HELL OR HIGH WATER
* 3 HIDDEN FIGURES + JACKIE

>>> Lista integral de nomeações no site da Academia.

Silêncio + Scorsese (3/3)

A estreia de Silêncio, de Martin Scorsese, a 19 de Janeiro, constitui, desde já, um dos grandes acontecimentos do ano cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Janeiro), com o título 'Martin Scorsese à escuta do silêncio de Deus'.

[ 1 ]  [ 2 ]

3. Celebrar o corpo

No universo cinematográfico de Scorsese, o ponto de fuga de tudo isto é sempre, de forma intensamente física, o corpo. Será preciso recordar também que um filme como Touro Enraivecido se desenvolvia como uma epopeia intimista em que o pugilista Jake La Motta se define como alguém que protagoniza uma celebração religiosa do seu próprio corpo?
Justamente, em Silêncio, a questão do corpo contamina todos os elementos da mise en scène. Desde logo, porque o gesto que consagra a apostasia (pisar o “fumie”) implica a violentação de uma vontade que desafia os valores inerentes à linguagem corporal. Depois, porque os mais diversos elementos narrativos nos vão fazendo sentir a violência da tensão que se estabelece entre os corpos ocidentais e a organização dos espaços nipónicos.
Sublinhe-se, nesse aspecto, a fundamental importância da direcção fotográfica de Rodrigo Prieto e da montagem de Thelma Schoonmaker — no primeiro caso, tratando o espaço, mesmo nos seus lugares mais luminosos, como um labirinto de luzes e sombras que repele aqueles que chegam do exterior; no segundo, criando ritmos e conexões, continuidades e descontinuidades que exprimem a solidão do olhar dos padres jesuítas perante uma realidade que ignora os seus valores e códigos.
No limite, o trabalho de Scorsese escolhe também um espaço de expressão de fascinante ambiguidade. Assim, mesmo através das suas singularidades narrativas, deparamos em Silêncio com a memória simbólica das grandes superproduções “bíblicas” que marcaram, em particular, os anos 50/60 de Hollywood (Scorsese tinha 13 anos quando, em 1956, se estreou nos EUA o emblemático Os Dez Mandamentos, de Cecil B. DeMille). Ao mesmo tempo, na sua geométrica construção do espaço e gestão do tempo, este filme é também um herdeiro da sofisticação do mestre nipónico Kenji Mizoguchi (1898-1956), autor do lendário Contos da Lua Vaga (1953).
Talvez que o cinema seja “apenas” uma arte de questionar os nossos modos de ver e ouvir, de observar o mundo à nossa volta, inventariando as suas evidências, tanto quanto as suas máscaras. Eis um filme que conduz essa arte ao supremo desafio de enfrentar o silêncio com que Deus recobre as actividades dos humanos. Crentes ou descrentes, com Scorsese compreendemos que através de tal desafio podemos pressentir a possibilidade do sagrado.

segunda-feira, janeiro 23, 2017

A aventura digital de Bonobo

O DJ Bonobo (nome artístico do inglês Simon Green) acaba de lançar o seu sexto álbum de estúdio, Migration, em tudo e por tudo fiel a um gosto de muitas contaminações entre electrónicas e trip hop, aqui e ali temperadas por uma suave nostalgia soul. Se outras razões não houvesse, o álbum mereceria alguma atenção por causa do prodigioso teledisco do tema No Reason. Dirigido por Oscar Hudson, trata-se de uma fascinante aplicação de recursos de manipulação/articulação de imagens capaz de nos provar que o digital não alterou apenas a figuração do espaço — no limite, é sempre a percepção da figura humana que está em causa.

Trump vs. democracia [citação]

>>> Em primeiro lugar, e para evitar qualquer mal entendido, sinto-me horrorizado por Trump — é uma catástrofe. Mas o que não devemos esquecer é que ele é o resultado de um determinado processo. E para resumir uma longa história, esse processo é a desintegração e o falhanço do establishment da esquerda democrática. Por isso, se lutarmos agora contra Trump, estaremos a lidar com aquilo que em medicina se chama sensação sintomática — toma-se um comprimido para combater a dor. Mas para curar a doença é preciso que algo aconteça nos partidos democráticos.

SLAVOJ ZIZEK
BBC
17 Janeiro 2017

De que falamos
quando falamos de quincôncios?

Grégoire Leprince-Ringuet
É a primeira revelação de 2017: chama-se Grégoire Leprince-Ringuet e estreou-se na longa-metragem com O Bosque dos Quincôncios — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Janeiro), com o título 'Um cineasta fascinado pela poesia dos quincôncios'.

Quincôncios. Palavra bizarra. Ou, pelo menos, desconhecida da maioria dos cidadãos. E, no entanto, trata-se de uma palavra que designa algo muito objectivo que, de uma maneira ou de outra, todos conhecemos ou podemos reconhecer: quincôncio é um modo peculiar de plantar as árvores, dispondo quatro delas nos vértices de um quadrado e a quinta no centro desse mesmo quadrado. O Bosque dos Quincôncios é um filme que começa, justamente, numa zona em que as árvores estão dispostas dessa maneira: o bosque da cena de abertura serve de cenário a um diálogo que parece selar a irrevogável separação de Paul (Grégoire Leprince-Ringuet) e Ondine (Amandine Truffy).
A seguir, no metro, Paul vê Camille (Pauline Caupenne), uma desconhecida, e cede ao impulso de a seguir nos labirintos da noite de Paris. De forma inusitada, aparentemente indecifrável, começamos a ouvir na banda sonora a Marcha Eslava, Op. 31, de Pyotr Ilyich Tchaikovsky. Comentário musical algo excêntrico? Talvez. O certo é que Paul descobre Camille num teatro, integrando um grupo que dança, freneticamente, ao som de Tchaikovsky. Num misto de surpresa e encantamento, Paul começa a dançar com Camille...
Esta descrição pouco elaborada garante, pelo menos, que estamos perante um filme que está longe de ser convencional ou previsível. Aquilo que começa como uma variação sobre um modelo tradicional da comédia romântica — A ama B, B abandona A, A encontra C —, vai-se transfigurando num exercício ironicamente teatralizado e subtilmente poético. Aliás, convém esclarecer que a evocação da poesia não envolve qualquer especulação (interpretativa ou crítica). Acontece que Grégoire Leprince-Ringuet, intérprete de Paul, também argumentista e realizador de O Bosque dos Quincôncios, escreveu o seu filme em verso, apelando a uma ambivalência em que a carnalidade das emoções não é repelida, antes parece sair reforçada, pelo artifício da palavra.
Nascido em Paris, em 1987, Leprince-Ringuet foi membro do coro infantil da Ópera de Paris, tendo-se estreado no cinema sob a direcção de André Téchiné, em Os Fugitivos (2003). Vimo-lo também, por exemplo, em As Canções de Amor (2007), de Christophe Honoré, ou Mistérios de Lisboa (2011), de Raul Ruiz.
Produzido pelo português Paulo Branco (através da sua empresa francesa Alfama Films), O Bosque dos Quincôncios é a primeira grande e fascinante revelação de 2017. O simples facto de se tratar de um filme construído a partir da sensualidade da palavra seria suficiente para o demarcar de muito cinema contemporâneo formatado pela ostentação gratuita da imagem. Ao mesmo tempo, o gosto surreal de Leprince-Ringuet, alicerçado no aparente naturalismo do quotidiano, remete-nos para uma riquíssima tradição francesa que passa pela referência tutelar de Jean Cocteau e, claro, pelas muitas variações “teatrais” de Jacques Rivette. Afinal de contas, a geometria dos quincôncios duplica os labirintos do amor.

Como "traduzir" Trump?

Libération (22 Jan. 2017)
O artigo de Daniel Schneidermann intitula-se: 'Trump : comment le traduire, le traiter, le titrer, etc.' [Trump: como traduzi-lo, tratá-lo, titulá-lo, etc.]. Ou seja: o jornalista do Libération recorda que o cliché segundo o qual vivemos num "mundo de imagens" pode e deve ser questionado nos seus limites. Mais exactamente, trata-se de confrontar o jornalismo com uma verdade interior tantas vezes menosprezada na selva dos links e da informação "instantânea": uma imagem vive sempre através da palavra.
A inquietação em torno da figura de Donald Trump leva-o mesmo a classificá-lo como "a monstruosidade Trump". Para logo a seguir introduzir uma dúvida metódica em relação à expressão utilizada: "Eis algo que nos descansa. Faz bem. E faz bem também, por certo, a alguns leitores. Mas irá desqualificar o que se segue aos olhos de outros leitores. Exercendo alguma contenção, poderia ter escrito apenas 'Trump'".
Grande e delicada questão, como são todas as questões de linguagem — tantas vezes menosprezadas por tantos jornalistas. Ou ainda: como lidar com o poder da oratória de Trump? Desqualificá-lo como medíocre ou manipulador corre o risco de se reduzir a um gesto "purificador" de boas intenções. A saber:

>>> Será necessário conservar toda a "oralidade"? Deixar em suspenso as frases não concluídas, as digressões, as repetições, deixar em estado informe o cozinhado verbal? Nada mais fácil do que destruir um entrevistado conservando na transcrição a sua oralidade bruta. Da oralidade à escrita, a passagem é sempre uma catástrofe. Nesse momento, o jornalista é todo poderoso. Conservando ou suprimindo um simples "euh", ele pode fazer passar o entrevistado por um génio ou um idiota. É uma das nossas pequenas armas secretas, de que nunca falamos.

Os "factos alternativos" de Trump

Trump, 2017 + Obama, 2009
FOTO: DN
Em tempos de tantas imagens, as mais variadas especulações seriam, talvez, inevitáveis perante a comparação de duas fotografias das multidões que acompanharam as tomadas de posse de Barack Obama (2009) e Donald Trump (2017).
Importa lembrar que todos os indicadores de Washington (incluindo o número de utilizadores do Metro nos dias dessas tomadas de posse) apontam para que o número daqueles que acompanharam Trump tenha sido à volta de um terço dos que estiveram presentes na cerimónia de posse de Obama (cerca de 1,8 milhões).
Dito isto, podemos reconhecer que a realidade está longe de se poder dizer, representar ou pensar apenas através da aritmética e que, por isso mesmo, seria possível enquadrar os números em causa (e o que se vê nas duas imagens) de formas muito diversas — desde que tais formas soubessem respeitar a complexidade dos factos e, em particular, a inteligência de cada um.
Mas não. Pelo menos da parte do novo Presidente dos EUA. Assim, Sean Spicer, o secretário para a imprensa escolhido por Trump, veio proclamar aos jornalistas que cobrem o dia a dia da Casa Branca que "esta foi a maior audiência que alguma vez assistiu a uma tomada de posse, ponto final" — a sua mentira seria "confirmada" pelo próprio Trump, na visita que fez à CIA, insurgindo-se também, uma vez mais, contra os media.
* * * * *
Tudo isto conduziu a uma situação televisiva que, para o melhor ou para o pior, vai entrar para a história da política no século XXI. Assim, na NBC, em diálogo com Chuck Todd (Meet the Press), Kellyanne Conway, conselheira de Trump, esclareceu que Spicer não mentiu — estava apenas a apresentar "factos alternativos".
Veja-se o respectivo registo.


Compreendemos, assim, que para a administração Trump o Big Brother, de Orwell, não é uma metáfora da repressão, mas um modo de conceber e habitar o mundo — e tendo em conta a conotação que a designação adquiriu através da "reality TV" (a que Trump também pertence), podemos deduzir que este estilo de discurso não é um desvio, mas a afirmação de uma filosofia. De quê? De imposição de uma "alternativa" sem qualquer fundamento cognitivo e, por isso mesmo, no limite, de esvaziamento do próprio conceito de realidade.
Leia-se a acutilante análise de Dean Obeidallah, incluindo um video do modo como tudo isso foi desmontado num painel da CNN — como escreve Obeidallah, em termos simples, "factos alternativos são mentiras".

Memórias íntimas de Hollywood

Carrie Fisher e Debbie Reynolds
Falecidas em dois dias consecutivos, Debbie Reynolds e Carrie Fisher, mãe e filha, são as figuras centrais do documentário Bright Lights — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Janeiro), com o título 'Isto não é o "Big Brother"'.

Quem viu o documentário Bright Lights: Com Carrie Fisher e Debbie Reynolds (a passar no canal TV Séries) não poderá deixar de recordar o passado recente: Carrie, a filha, faleceu a 27 de Dezembro, na sequência de um ataque cardíaco ocorrido numa viagem de avião; Debbie, a mãe, de saúde muito frágil, apenas resistiu mais um dia — tinham, respectivamente, 60 e 84 anos.
Claro que o documentário realizado por Alexis Bloom e Fisher Stevens é anterior a tudo isso. Apresentado no Festival de Cannes, em Maio do ano passado, estava agendado para emissão nos canais da HBO no próximo mês de Março — na sequência da morte das duas actrizes, a estação decidiu antecipar a sua difusão global (em Portugal, estamos a vê-lo em paralelo com os EUA).
Seja como for, não é possível abstrair do trágico desaparecimento das duas protagonistas. Afinal de contas, elas foram símbolos modelares de duas vertentes do imaginário de Hollywood: Debbie Reynolds, através de comédias românticas e musicais como Serenata à Chuva (1952), encarnou a utopia feliz do entertainment clássico; interpretando a Princesa Leia, na saga A Guerra das Estrelas, Carrie Fisher foi uma bandeira, ainda romântica, das novas superproduções juvenis. Ao mesmo tempo, como o documentário nos mostra, a relação mãe/filha, mesmo na mais radiosa exposição mediática, foi sempre assombrada pelos mais variados dramas privados.
Daí o efeito paradoxal, francamente perturbante, de Bright Lights. Há momentos em que experimentamos a sensação incómoda de estarmos a ser confrontados com situações que pertencem à mais estrita privacidade (por exemplo, a conversa de Carrie com o pai, Eddie Fisher, em meados de 2010, poucos meses antes do seu falecimento). Ao mesmo tempo, tudo o que vemos envolve a disponibilidade das duas protagonistas para evocar as muitas atribulações da sua existência — desde a candura dos filmes de família até aos espectáculos finais da mãe, já com evidentes limitações físicas, passando pela toxicodependência da filha.
Bright Lights surge como um objecto de fronteira entre dois imaginários, apesar de tudo, bem diferentes. Por um lado, pressentimos a obscenidade da “reality TV”, instrumentalizando tudo e todos para, em última instância, esvaziar qualquer compaixão humana; por outro lado, não podemos deixar de admirar e respeitar a coragem de duas mulheres que enfrentam os factos e consequências das suas histórias pessoais. Importa escolher sempre essa coragem contra a cobardia moral do Big Brother e seus derivados.

domingo, janeiro 22, 2017

A IMAGEM: Patrick Chappatte, 2017

PATRICK CHAPPATTE
"... Que Deus nos ajude!!"
The New York Times, 20 Jan. 2017

Quando a realidade ultrapassa a ficção


Ainda é cedo para criar um olhar mais amplo e crítico sobre a sexta temporada de Homeland (que arrancou esta semana na Fox), série que representa uma das mais interessantes criações do panorama atual da ficção criada para o pequeno ecrã tendo conseguido, época após época, solidificar e aprofundar tramas em torno das suas personagens principais sem ao mesmo tempo descuidar a construção de um sólido arco narrativo a cada ano, por ele passando sempre ecos dos focos de instabilidade do mapa político mundial contemporâneo.

Sabíamos já que a ação seria devolvida a solo americano depois de algum tempo vivido entre o médio oriente e, na última temporada, a cidade de Berlim. O que não sabia a equipa de argumentistas, de casting e de realização, quando estavam a escrever, escolher elenco e a filmar os episódios da sexta temporada, era que, contra o que se previa, a Casa Branca recebe em 2017 não uma mulher, mas sim Donald Trump. E o cunho de atualidade que a ideia de termos, também aqui, uma mulher como presidente-eleita, em tempo de espera pela tomada de posse, traduziu afinal um daqueles momentos em que a realidade acabou por ultrapassar a ficção. Mas a figura de Elisabeth Keane, uma senadora de Nova Iorque (olhem só a coincidência com Hillary Clinton) que foi eleita para a presidência parece ser mesmo assim uma das peças mais interessantes das novas que este primeiro episódio colocou em jogo. É desde logo um golpe certeiro a escolha da atriz Elisabeth Marvel para o papel... Basta que nos lembremos da terceira e quarta temporadas de House of Cards para recordarmos como ali vestiu brilhantemente o papel de Heather Dunbar, que disputava com Frank Underwood a nomeação pelos democratas. Ou seja, a ressonância desses ecos presidenciáveis acaba por estar na nossa memória recente e vê-la, agora, presidente-eleita (mesmo com uma outra personagem numa outra série) acaba por carregar essa herança de familiaridade. Mesmo assim, mais do que a escolha da atriz, o mais interessante a acompanhar nesta presidente-eleita parece ser o modo como, e aqui ao contrário do que seria de supor em Hillary, ela parece não seguir muitas das opções habitualmente em cena nas questões de política internacional. Tem assim uma pitada de, eventualmente, Sanders ou até Trump, embora com devidas distâncias. Veremos como evolui nas cenas dos próximos capítulos. E que implicações tem o novo tabuleiro de xadrez político nas relações internas na CIA, que terão expressão aqui através das figuras de Dar Adal (F. Murray Abraham) e de Saul Berenson (Mandy Patinkin).

O outro foco interessante a seguir tem a ver com sinais de islamofobia que habitam a detenção de um jovem negro muçulmano, filho de emigrantes mas já cidadão americano e que, apesar de ter uma consciência crítica, até ver parece mais ser uma voz de protesto do que uma eventual ameaça terrorista. Também aqui há que ver o que os próximos episódios nos dizem. É precisamente em volta deste jovem que reencontramos a figura (central) de Carrie Mathison (Claire Danes), que regressou aos EUA e trabalha num centro que procura zelar pela integração social de muçulmanos residentes na área de Nova Iorque.

Ela estará certamente no epicentro da trama, devendo a evolução da narrativa juntar a dimensão política nacional (em vésperas de tomada de posse) e uma eventual ameaça de segurança (ou o receio de que ela possa existir, ainda não sabemos) à continuação de uma atenção pela dimensão mais pessoal do seu quotidiano, quer pelo facto de estar ela a educar a filha, quer na órbita de Peter Quinn (Rupert Friend), que recupera num hospital das sequelas da violência a que foi sujeito em Berlim e cujo relacionamento com a protagonista gerou os momentos de mais intenso jogo de emoções no relativamente tranquilo episódio de estreia da sexta temporada... Mas não me cheira que a coisa se mantenha calma daqui em diante... Para já, começou bem.

A sexta temporada de "Homeland" é exibida às quartas-feiras, pelas 22.10 na Fox.

sábado, janeiro 21, 2017

"Animals", 40 anos

A célebre capa com a Battersea Power Station, central eléctrica de Londres (desactivada em 1983), e um... porco voador: Animals, 10º álbum de estúdio dos Pink Floyd, editado entre Wish You Were Here (1975) e The Wall (1979), é uma celebração musical que envolve porcos, cães e ovelhas — na prática, uma parábola existencial, muito humana, em que, por exemplo, nas duas partes do tema Pigs on the Wing [audio], se canta assim:

If you didn't care what happened to me,
And I didn't care for you,
We would zig zag our way through the boredom and pain
Occasionally glancing up through the rain.
Wondering which of the buggars to blame
And watching for pigs on the wing.

You know that I care what happens to you,
And I know that you care for me.
So I don't feel alone,
Or the weight of the stone,
Now that I've found somewhere safe
To bury my bone.
And any fool knows a dog needs a home,
A shelter from pigs on the wing.

Enfim, uma obra de admirável austeridade, quase sempre secundarizada quando se revisitam as memórias dos Pink Floyd e que, mais do que nunca, até pelo seu simbolismo político, importa voltar a escutar — Animals foi editado no dia 21 de Janeiro de 1977, faz hoje 40 anos.

Silêncio + Scorsese (2/3)

Adam Driver e Andrew Garfield
A estreia de Silêncio, de Martin Scorsese, a 19 de Janeiro, constitui, desde já, um dos grandes acontecimentos do ano cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Janeiro), com o título 'Martin Scorsese à escuta do silêncio de Deus'.

[ 1 ]

2. "Porquê eu?"

Silêncio vem encerrar aquilo que, a partir de agora, poderemos designar como a “trilogia religiosa” do seu autor, sendo A Última Tentação de Cristo (1988) e Kundun (1997) os dois primeiros momentos. O que os liga é o reconhecimento de uma trágica e comovente desproporção simbólica. Tal como os padres de Silêncio, Jesus e o Dalai Lama, figuras nucleares desses dois filmes, experimentam a vertigem de serem convocados para uma missão propriamente sagrada — a assunção de uma verdade que transcende os dados da existência comum — que lhes suscita uma dúvida radical: serão eles capazes de satisfazer os desígnios da divindade que servem?
Há uma outra maneira de dizer isto: o trabalho dos portadores das palavras da fé não pode deixar de lidar com a vida comum, regressando à terra, às tensões sociais, às convulsões da política. Ou ainda: os protagonistas da missão divina vão ter de reconhecer os limites inerentes à sua condição humana. Um pouco como o Jesus de A Última Tentação de Cristo que, a certa altura, se vira para o Céu, proclamando uma incontornável angústia: “Porquê eu?”.
Escusado será dizer que Scorsese não perde de vista o paradoxo formal e filosófico que assim se instala: por um lado, a expansão da fé remete sempre, por definição, para qualquer “coisa” que está para além do visível; por outro lado, o cinema é essa arte “primitiva” que ambiciona confrontar-se com o invisível, imaginando-o, ou melhor, revertendo-o para o mundo das imagens. Será preciso recordar que Georges Méliès, pioneiro absoluto do poder encantatório das imagens, era exuberantemente homenageado em A Invenção de Hugo?
Daí o peculiar suspense que se vai instalando no desenvolvimento de Silêncio. É verdade que a fé dos protagonistas está para além das imagens (“fumie”) que ilustram a sua crença. Mas não é menos verdade que aquilo que as autoridades japonesas lhes exigem envolve a negação do valor simbólico dessas imagens (literalmente espezinhadas). Mais do que isso: eles vão ter de escolher entre esse acto de conspurcação das imagens e a morte — a morte dos seus irmãos de fé ou a sua própria morte.

A canção de protesto na era Trump (1)



O título não deixa dúvidas de que se trata de um alerta sobre os poderes que os mecanismos democráticos dão a quem vota. Canta-se "I give you power / I can take it Away"... A canção tem precisamente por título I Give You Power e junta Mavis Staples aos Arcade Fire. Surgiu na véspera da tomada de posse. Mas lança o tom pelo qual muitos músicos vão dar voz a estes tempos que vivemos.

Em tempo de transição...


Esta semana ficará registada na história. A tomada de posse de Donald Trump não é apenas a de um novo presidente dos EUA. Porque pode ser o início de uma era em que tudo pode ficar diferente da ordem que conhecemos desde o fim da II Guerra Mundial...Este é também um tempo de balanço ao que foram os oito anos de administração de Obama. E não faltam por isso bons trabalhos de jornalismo que façam contas a todo este passado recente e olhem em frente.

A Time, na sua edição desta semana, tem a Casa Branca na capa e, como tema principal, uma análise sobre o que a chegada de Trump pode significar para a ordem mundial. Os artigos mais longos são contudo dedicados à Casa Branca. Sim... Afinal é “quem” está na capa da revista! Um dos textos recorda a chegada, ali, de Obama, há oito anos. Num outro algumas das figuras da administração cessante falam da vida quotidiana naquele lugar e dão dicas a quem chega, num verdadeiro “guia de sobrevivência”. E há depois um artigo assinado pelas filhas gémeas de George W. Bush no qual acolhem a chegada das duas filhas dos Obama ao “clube” dos ex-primeiros filhos...

Para complementar esta visão que tem ainda bem presente a vida de Obama na Casa Branca, a Rolling Stone, na edição de 15 de dezembro apresentava uma entrevista de balanço com o presidente que agora se despede, feita por Jann S. Wenner. E junta, curiosamente, uma outra, de antecipação sobre o que aí vem, com Bernie Sanders.

"House of Cards" regressa a 30 de Maio

Não, não é nenhuma imagem gerada pelo pessimismo de um qualquer observador da América de Donald Trump... Acontece que, num gesto típico das inter-acções que a globalização mediática favorece, a Netflix decidiu anunciar a data de estreia — 30 de Maio — da quinta temporada de House of Cards no mesmo dia em que foi empossado o 45º Presidente dos EUA. Eis 35 segundos de apoteótica perversão informativa.

Ser ou não ser Trump [citação]

>>> O Presidente Trump falou de solidariedade, da necessidade de curar as nossas divisões, e do modo como fará da América um lugar "onde não haverá lugar para o preconceito". O certo é que o Sr. Trump fez mais do que ninguém para gerar o rancor e as divisões que agora promete curar. Para sarar as nossas feridas políticas, seria preciso que Trump se tornasse no que não é.

PETER WEHNER
'A América de fantasia de Donald Trump'
in The New York Times, 20 Jan. 2017