terça-feira, janeiro 24, 2017

Silêncio + Scorsese (3/3)

A estreia de Silêncio, de Martin Scorsese, a 19 de Janeiro, constitui, desde já, um dos grandes acontecimentos do ano cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 Janeiro), com o título 'Martin Scorsese à escuta do silêncio de Deus'.

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3. Celebrar o corpo

No universo cinematográfico de Scorsese, o ponto de fuga de tudo isto é sempre, de forma intensamente física, o corpo. Será preciso recordar também que um filme como Touro Enraivecido se desenvolvia como uma epopeia intimista em que o pugilista Jake La Motta se define como alguém que protagoniza uma celebração religiosa do seu próprio corpo?
Justamente, em Silêncio, a questão do corpo contamina todos os elementos da mise en scène. Desde logo, porque o gesto que consagra a apostasia (pisar o “fumie”) implica a violentação de uma vontade que desafia os valores inerentes à linguagem corporal. Depois, porque os mais diversos elementos narrativos nos vão fazendo sentir a violência da tensão que se estabelece entre os corpos ocidentais e a organização dos espaços nipónicos.
Sublinhe-se, nesse aspecto, a fundamental importância da direcção fotográfica de Rodrigo Prieto e da montagem de Thelma Schoonmaker — no primeiro caso, tratando o espaço, mesmo nos seus lugares mais luminosos, como um labirinto de luzes e sombras que repele aqueles que chegam do exterior; no segundo, criando ritmos e conexões, continuidades e descontinuidades que exprimem a solidão do olhar dos padres jesuítas perante uma realidade que ignora os seus valores e códigos.
No limite, o trabalho de Scorsese escolhe também um espaço de expressão de fascinante ambiguidade. Assim, mesmo através das suas singularidades narrativas, deparamos em Silêncio com a memória simbólica das grandes superproduções “bíblicas” que marcaram, em particular, os anos 50/60 de Hollywood (Scorsese tinha 13 anos quando, em 1956, se estreou nos EUA o emblemático Os Dez Mandamentos, de Cecil B. DeMille). Ao mesmo tempo, na sua geométrica construção do espaço e gestão do tempo, este filme é também um herdeiro da sofisticação do mestre nipónico Kenji Mizoguchi (1898-1956), autor do lendário Contos da Lua Vaga (1953).
Talvez que o cinema seja “apenas” uma arte de questionar os nossos modos de ver e ouvir, de observar o mundo à nossa volta, inventariando as suas evidências, tanto quanto as suas máscaras. Eis um filme que conduz essa arte ao supremo desafio de enfrentar o silêncio com que Deus recobre as actividades dos humanos. Crentes ou descrentes, com Scorsese compreendemos que através de tal desafio podemos pressentir a possibilidade do sagrado.