segunda-feira, janeiro 23, 2017

Memórias íntimas de Hollywood

Carrie Fisher e Debbie Reynolds
Falecidas em dois dias consecutivos, Debbie Reynolds e Carrie Fisher, mãe e filha, são as figuras centrais do documentário Bright Lights — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 Janeiro), com o título 'Isto não é o "Big Brother"'.

Quem viu o documentário Bright Lights: Com Carrie Fisher e Debbie Reynolds (a passar no canal TV Séries) não poderá deixar de recordar o passado recente: Carrie, a filha, faleceu a 27 de Dezembro, na sequência de um ataque cardíaco ocorrido numa viagem de avião; Debbie, a mãe, de saúde muito frágil, apenas resistiu mais um dia — tinham, respectivamente, 60 e 84 anos.
Claro que o documentário realizado por Alexis Bloom e Fisher Stevens é anterior a tudo isso. Apresentado no Festival de Cannes, em Maio do ano passado, estava agendado para emissão nos canais da HBO no próximo mês de Março — na sequência da morte das duas actrizes, a estação decidiu antecipar a sua difusão global (em Portugal, estamos a vê-lo em paralelo com os EUA).
Seja como for, não é possível abstrair do trágico desaparecimento das duas protagonistas. Afinal de contas, elas foram símbolos modelares de duas vertentes do imaginário de Hollywood: Debbie Reynolds, através de comédias românticas e musicais como Serenata à Chuva (1952), encarnou a utopia feliz do entertainment clássico; interpretando a Princesa Leia, na saga A Guerra das Estrelas, Carrie Fisher foi uma bandeira, ainda romântica, das novas superproduções juvenis. Ao mesmo tempo, como o documentário nos mostra, a relação mãe/filha, mesmo na mais radiosa exposição mediática, foi sempre assombrada pelos mais variados dramas privados.
Daí o efeito paradoxal, francamente perturbante, de Bright Lights. Há momentos em que experimentamos a sensação incómoda de estarmos a ser confrontados com situações que pertencem à mais estrita privacidade (por exemplo, a conversa de Carrie com o pai, Eddie Fisher, em meados de 2010, poucos meses antes do seu falecimento). Ao mesmo tempo, tudo o que vemos envolve a disponibilidade das duas protagonistas para evocar as muitas atribulações da sua existência — desde a candura dos filmes de família até aos espectáculos finais da mãe, já com evidentes limitações físicas, passando pela toxicodependência da filha.
Bright Lights surge como um objecto de fronteira entre dois imaginários, apesar de tudo, bem diferentes. Por um lado, pressentimos a obscenidade da “reality TV”, instrumentalizando tudo e todos para, em última instância, esvaziar qualquer compaixão humana; por outro lado, não podemos deixar de admirar e respeitar a coragem de duas mulheres que enfrentam os factos e consequências das suas histórias pessoais. Importa escolher sempre essa coragem contra a cobardia moral do Big Brother e seus derivados.