Deborah Kara Unger é, por certo, uma das mais radicais presenças femininas de toda a obra de David Cronenberg. Em sentido literal: confronta-se (e confronta-nos) com a raiz das coisas. Na genial adaptação do romance de J. G. Ballard, Crash (1996), a sua personagem e o marido (James Spader) vivem uma existência definida para além dos parâmetros da ordem e, por extensão, de qualquer ordem sexual: o seu liberalismo de relações confunde-se com uma espécie de cansaço sem pensamento em que a gratificação automática esgota qualquer hipótese de desejo. Cronenberg moralista? Talvez, se entendermos que o desejo da moral é inerente à sobrevivência anímica do próprio ser humano. Sendo esta uma história sobre a devoração do quotidiano pelos automóveis, Unger oferece-se ao ruído pesado e monótono que vem da auto-estrada, ficando apenas a pergunta de toda uma civilização: "De onde vêm tantos carros?"