Carlos, de Olivier Assayas, nasce de uma cumplicidade feliz entre televisão e cinema. Agora, a edição em DVD permite-nos avaliar proximidades e diferenças — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 de Dezembro), com o título 'Televisão que também é cinema'.
Quando a mini-série Carlos, de Olivier Assayas, passou, fora de competição, na selecção oficial do Festival de Cannes de 2010, não deixou de haver quem levantasse dúvidas sobre a pertinência de tal apresentação. Apesar da assinatura de um nome forte do cinema francês (autor de Desordem e Paris Desperta, Assayas é uma das mais importantes revelações da década de 80), Carlos surgia, afinal, como um objecto gerado pela televisão. Aliás, poucos dias depois da sua exibição em Cannes, acontecia a sua primeira passagem nos ecrãs do Canal Plus.
No momento em que Carlos passa a estar disponível no mercado português do DVD, vale a pena recordar tal polémica. Vale a pena, sobretudo, sublinhar que o seu maniqueísmo ignorava alguns importantes dados conjunturais. Desde logo, o próprio envolvimento do Canal Plus. De facto, estamos a falar, não apenas de uma entidade difusora, mas sim de um projecto mediático que, desde a sua fundação (1984), assumiu uma decisiva ligação estrutural e financeira com todos os sectores e tendências do cinema francês. Para além de inevitáveis contratempos e desequilíbrios, o Canal Plus nasce de um princípio de política cultural que alguns países europeus se dão ao luxo de continuar a ignorar: a necessidade de articular de forma inteligente e produtiva as dinâmicas de televisão e cinema, preservando os interesses de ambas as partes.
O trabalho de mise en scène decorre de uma elaborada reflexão sobre tais dinâmicas. Por um lado, ao contar a história de um dos protagonistas do terrorismo internacional na década de 70 (Ramirez Sanchez, conhecido como “Carlos, o Chacal”), Assayas conserva o gosto peculiar das séries, criando um fluxo de acontecimentos que se adequa de forma exemplar à narrativa por capítulos, típica de muitas matrizes televisivas; por outro lado, a sua abordagem da figura de “Carlos” (interpretado pelo notável Edgar Ramirez), no interior de uma complexa paisagem geo-política, integra componentes da saga histórica de raízes eminentemente cinematográficas.
A edição em DVD permite-nos perceber que a duração é o dado mais problemático desta relação cinema/televisão. Assim, a mini-série, repartida por três episódios, dura cinco horas e meia, tendo sido remontada para exibição cinematográfica numa versão de menos de metade (duas horas e vinte minutos). Integrando ambas as versões, o DVD mostra, afinal, que a montagem para as salas de cinema envolve mais do que uma brutal amputação de minutos: é a própria respiração dramática da realização de Assayas que surge irremediavelmente posta em causa.
Moral da história: as relações criativas cinema/televisão não são automáticas nem universais. E não se trata de defender uma das partes contra a outra, mas de continuar a favorecer a sua aproximação e as suas eventuais cumplicidades, na certeza de que tal processo pode ser mutuamente enriquecedor.