GIORGIO VASARI As Tentações de São Jerónimo, 1541 |
Os comentários de Marcelo Rebelo de Sousa na noite de domingo, na TVI, não caíram desta vez no imenso silêncio com que, de um modo geral, a classe política encara os discursos televisivos. Assim, Vieira da Silva, dirigente do Partido Socialista, referiu-se a uma ultrapassagem dos "limites do aceitável" e àquilo que considerou um "apelo ao voto".
Em boa verdade, semelhante reacção só peca por tardia: a esmagadora maioria dos políticos continua a comportar-se como se o dispositivo televisivo não existisse, recusando-se sistematicamente a lidar com os elementos discursivos e simbólicos desse dispositivo. Vale a pena referir alguns desses elementos, na certeza de que o simplismo das intervenções de Marcelo Rebelo de Sousa não passa de uma gota de água no imenso oceano de degradação comunicativa que, todos os dias, as televisões fabricam e promovem.
Três exemplos (renovados ao longo desta campanha):
1 - a promoção do anedótico: para as televisões, já quase não há campanha eleitoral, mas apenas anedotas que pontuam o dia a dia dos candidatos.
2 - o discurso político como reacção instantânea: todos os dias, os protagonistas políticos são compelidos a intervir em situações de pressão e aceleração, reduzindo qualquer pensamento à obrigação de um soundbyte que funcione em 5 ou 10 segundos.
3 - a fulanização dos comentários: muitos comentadores tratam a política como uma galeria de retratos impressionistas dos seus protagonistas, especulando infinitamente sobre a "psicologia" das respectivas personalidades e intenções.
Para este estado de coisas, insisto, muito contribui a indiferença — ou apenas a cobardia intelectual — de muitos protagonistas da cena política. Aliás, todos os dias sentimos que esses protagonistas se submetem à formatação comunicativa em que as televisões os encerram, limitando-se a funcionar como peças instrumentais de uma narrativa que, salvo raras excepções, privilegia o anedótico e celebra, até á histeria, todas as hipóteses de conflito.
Dito de outro modo: quase todos os membros da classe política continuam a enquistar-se na recusa de pensar a televisão como um dado vital (a meu ver, o dado vital) dos valores educacionais e morais de Portugal, aqui e agora. Resta saber se estamos apenas perante a cegueira patética de quem se demitiu do mais visceral gesto político: olhar à sua volta.
A pergunta é, por isso: como fazer política sem pensar politicamente a televisão?