A passagem de This Is Not a Film, em Cannes, deixou uma salutar pedagogia sobre os poderes do cinema e também a sua possível contaminação televisiva — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 de Maio), com o título 'A lição de Jafar Panahi'.
À sua maneira, o 64º Festival de Cinema de Cannes (concluído no domingo, 22) foi também um evento eminentemente televisivo. Desde logo, pelos seus múltiplos ecos nos canais de todo o mundo. Infelizmente, pelo que pude ver em reportagens da televisão francesa (e não só), tais ecos são muitas vezes rotineiros e estereotipados, dando pouca ou nenhuma atenção aos filmes, optando antes pela celebração banal da passagem das estrelas na célebre “passadeira vermelha” do Palácio dos Festivais (em boa verdade, apenas uns brevíssimos minutos de pose no meio de um evento que, todos os dias, dá a ver algumas centenas de filmes).
Este ano, a agitação em torno das polémicas palavras de Lars von Trier (sobre a sua “compreensão” de Hitler e dos nazis) foi televisivamente reveladora, a ponto de quase sempre ter sido “esquecido” o facto de o cineasta dinamarquês ter pedido desculpa, reconhecendo a “estupidez” das suas declarações. Por oposição, foi completamente secundarizada a passagem do filme do iraniano Jafar Panahi, ironicamente intitulado This Is Not a Film (à letra: “Isto não é um filme”).
É pena que assim tenha acontecido. Primeiro, porque o festival assumia uma posição exemplarmente política de defesa da liberdade artística, divulgando ao mundo a situação de Panahi, retido em casa enquanto aguarda o desenvolvimento de um processo que o condenou a seis anos de prisão, proibindo-o de filmar durante vinte anos e também de dar entrevistas. Depois, porque This Is Not a Film possui uma dimensão insolitamente televisiva, explorando de forma pedagógica os recursos e limites da “reportagem”. Na prática, Mojtaba Mirtahmasb (co-autor de This Is Not a Film) filmou Panahi em sua casa, dando a ver as forçadas rotinas de um homem que explora até ao limite as suas limitadas relações com o exterior (telemóvel, Internet, televisão...).
Poderia ser um retrato maniqueísta, como muitas reportagens “personalizadas” que tratam as pessoas como meros instrumentos de um discurso formatado. Mas não: Panahi é um cidadão que não abdica de valorizar as imagens (e os sons!) como matérias vitais da nossa inserção no mundo. E isso é sempre uma lição preciosa, em cinema ou televisão.