GOTTFRIED HELNWEIN O Murmúrio dos Inocentes (12), 2009 |
1. Importa reconhecê-lo: a televisão é uma impressionante máquina de produção ideológica, trabalhando incessantemente para apagar o seu próprio trabalho discursivo, empenhando-se sempre em fazer-se passar por coisa natural.
2. Veja-se o que se passou, em menos de 24 horas, com os comentários de Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) na TVI: no domingo, em conversa com Júlio Magalhães, MRS teceu uma série de considerações "aritméticas" sobre a campanha e as hipóteses de PS e PSD, exponenciando a pobreza intelectual e a irrisão argumentativa daquele que é, para todos os efeitos, o modelo dominante de comentário (tele)político; na segunda-feira à noite, de novo na TVI, agora em diálogo com José Alberto Carvalho, MRS veio reagir aos ecos da sua intervenção na classe política, no fundo proclamando um princípio rudimentar: o seu direito a ter um ponto de vista pessoal (por certo não estranho à sua filiação no PSD).
3. Que aconteceu, então? Em menos de 24 horas, a questão fulcral da visão do mundo que as televisões predominantemente sustentam — sobretudo a visão do mundo político — foi transfigurada: de uma interrogação filosófica dos valores que sustentam tal visão passou-se para a defesa "heróica" da legitimidade de cada ponto de vista. Então MRS não tem direito a ter um ponto de vista, seja ele político ou mesmo claramente partidário? A resposta só pode ser uma: claro que sim.
4. O que assim se mascara é que o comentário político não é um dado adquirido, muito menos uma natureza que devamos encarar como uma imanência discursiva. Cada comentário político reflecte um modo de problematizar a política e, daí, um pensamento sobre ela. Assim, por exemplo, quando seguimos uma argumentação de um comentador como Pacheco Pereira, podemos estar mais ou menos de acordo com ela (também temos direito a um ponto de vista, certo?...), mas sabemos que se trata de tentar compreender a pluralidade do mundo para além de qualquer estereótipo imposto pelas linguagens televisivas. No caso de MRS, não se passa da mesma conjugação de retratos anedóticos das "personalidades" dos políticos com especulações politicamente frívolas sobre a "verdade" dos números.
5. Não por acaso, José Alberto Carvalho lembrou que o comentário político não pode agradar a "gregos e troianos". É uma máxima que reflecte o esplendor deste vazio televisivo: espalhar uma visão anedótica da política e daí lavar as mãos como Pilatos — se é de invocações simbólicas que se trata, sejamos bíblicos.