domingo, março 13, 2011

" E o Tempo Passa": o cinema português face à telenovela


Nas últimas décadas, a existência do cinema português está marcada pelo poder devastador da telenovela. Dito de outro modo: é preciso filmar sem recalcar tal dependência. E o Tempo Passa, de Alberto Seixas Santos, é um filme consciente desse problema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 de Março), com o título 'Ser e não ser português'.

Como pensar o cinema português sem questionar a sua frágil solidão vivida numa paisagem dominada por telenovelas? Aliás, a pergunta deve ser reformulada: de onde vem o tabu que impede de perguntar que efeitos as telenovelas têm produzido na economia do audiovisual português e, mais do que isso, que valores injectam na mente e nos hábitos dos cidadãos portugueses? Isto, convém recordar, ao longo de um massacre estético que começou há mais de 30 anos...
E o Tempo Passa é, neste contexto, um filme modelarmente corajoso, expondo o universo das telenovelas como uma indústria de ilusões banais, em tudo e por tudo alheia à gloriosa fábrica de sonhos que o cinema clássico chegou a ser. Mas é também um objecto de serena atenção à complexidade do factor humano: vemos a telenovela como um mercado de trabalho habitado por gente viva, contraditória, por vezes comovente. Não se trata de demonizar seja quem for, mas de observar, num misto de crueldade e desencanto, a teia de solidões que se esconde para além da cortina da felicidade mediática.
Estamos, afinal, perante um novo trabalho de Alberto Seixas Santos, o mesmo cineasta que filmou os fantasmas do salazarismo (Brandos Costumes, 1975), as mágoas da revolução (Gestos & Fragmentos, 1983) ou a violência gelada do dinheiro (Mal, 2000). Dito de outro modo: um artista que não abdica de perguntar o que significa ser português. E que o faz mantendo uma disponibilidade militante para os actores e suas singularidades. Sofia Aparício, Isabel Ruth, Rita Durão, Américo Silva, Pedro Górgia e Joana Metrass são alguns dos que circulam por E o Tempo Passa, mostrando que é possível criar personagens com vida própria, libertas da agonia dos clichés da telenovela.