FOTOS de Mert Alas e Marcus Piggott / Armani
De acordo com as regras dominantes do nosso universo mediático, os "famosos" batem aos pontos as memórias cinéfilas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 de Janeiro), com o título 'Como olhamos o preto e branco?'.
Nos últimos dias, as fotografias de Cristiano Ronaldo para a nova campanha de roupa interior Armani têm sido tema dominante no acelerado e volátil mundo das imagens. De tal modo que, no contexto português, levaram mesmo à bizarra secundarização das fotos de Megan Fox para a mesma campanha (todas elas da autoria de Mert Alas e Marcus Piggott).
As imagens são magníficas, ilustrando um imaginário inerente àquela marca, com raízes na obra de mestres como Richard Avedon ou Helmut Newton. Em todo o caso, não pude deixar de observar um desconcertante contraponto (ou a ausência dele): quase ninguém deu atenção ao facto de, também esta semana, ter falecido Dennis Stock, não apenas um dos nomes lendários da agência Magnum, a par de Robert Capa ou Henri Cartier-Bresson, mas também o autor da célebre fotografia de James Dean a passear à chuva (Times Square, 1955), por certo um dos símbolos [foto] mais universais do imaginário cinéfilo do século XX.
Bem sabemos que a televisão desvalorizou as imagens a preto e branco, sendo provável que haja muitos cidadãos, condicionados por um imenso equívoco estético, a contemplar agora a fotografia de Dean como uma coisa pitoresca, pertencente a uma idade “menor” da fotografia (e do cinema). O certo é que tal aspecto não chega para explicar o silêncio que se abateu sobre a memória de Stock, uma vez que as imagens de Megan Fox e Cristiano Ronaldo são... a preto e branco!
Como é óbvio, a actriz e o futebolista são estrelas do mundo contemporâneo do entertainment. Não podemos ignorar esse dado nem os seus efeitos (publicitários, precisamente) nos consumidores de todo o mundo. A questão é outra, e de outra natureza: a “legitimação” do preto e branco só acontece, não pelo valor específico das imagens, mas através de uma espécie de caução que lhe é conferido pelo estatuto mediático dos “famosos” (é sintomático que a generalização do termo “famosos”, em vez de “estrelas”, tenha as suas raízes na mediocridade triunfante da reality TV e da chamda imprensa cor de rosa).
Tudo isto acontece na mesma semana em que chega às salas portuguesas um extraordinário filme a preto e branco: O Laço Branco [cartaz], de Michael Haneke, evocando a mecânica das estruturas de poder (político e religioso) numa pequena aldeia alemã do começo do século XX. Já ganhou algumas das maiores distinções do mundo do cinema, incluindo a Palma de Ouro de Cannes e o título de melhor filme de 2009 no palmarés da Academia de Cinema Europeu [entretanto, foi distinguido com o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro]. Seja como for, a cruel banalização dos olhares em que vivemos justifica uma pergunta muito particular: será que o facto de O Laço Branco ter sido rodado a preto e branco vai funcionar como elemento de resistência de alguns espectadores?
Não se trata, entenda-se, de julgar esses espectadores. Trata-se, isso sim, de verificar que vivemos um tempo em que a memória de Dennis Stock já não pesa. Não nos admiremos, por isso, se um dia destes quase toda a gente tiver esquecido, nem que seja em forma de gélida indiferença, que uma boa metade da história do cinema é feita a preto e branco.