Com o filme Séraphine, Martin Provost convida-nos a percorrer o universo convulsivo de uma pintora exterior a modas, tendências ou movimentos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 de Setembro), com o título 'Uma artista contra o destino'.
Não conheço alguns dos títulos que disputaram os principais Césares do cinema francês, em confronto directo com Séraphine. Não vi, por exemplo, L’Ennemi Public nº 1, de Jean-François Richet, sobre o gangster Jacques Mesrine, filme que, para vários sectores da imprensa francesa, era o candidato óbvio aos prémios principais. Seja como for, há qualquer coisa de singularmente corajoso no facto de a Academia Francesa ter consagrado um objecto como Séraphine, sobretudo num tempo em que o modelo da “biografia artística” está tão contaminado pelas convenções do telefilme e por essa visão determinista segundo a qual um artista só o é por causa do destino.
Ora, se há aspecto fascinante na vida desta pintora naïf é, justamente, o inverso: trabalhando como criada de limpeza, habitando um meio rural relativamente isolado, distante das grandes convulsões culturais e sociais, para mais marcada por uma dolorosa vida interior (internada, em 1932, num hospital psiquiátrico por sofrer de “psicose crónica”), Séraphine de Senlis foi alguém que viveu contra o negrume do seu próprio destino, conseguindo, face à indiferença de quase todos, fazer valer a originalidade e a beleza da sua arte.
Daí a importância da personagem de Wilhelm Uhde (1874-1947) na afirmação pública de Séraphine e, antes disso, na simples criação de condições práticas para ela praticar e desenvolver a sua vocação pictórica. Coleccionador, galerista e crítico de arte alemão, Uhde soube ver Séraphine para além das rotinas do quotidiano, reconhecendo nos seus quadros a energia de uma linguagem própria. E é uma pequena maravilha o modo como o filme de Martin Provost encena a relação entre a pintora (Yolande Moreau) e o seu mentor (Ulrich Tukur): ela frágil como um animal acossado, ele conseguindo sentir a vibração das formas para além das aparências sociais. Discretos e infinitamente castos, formam o mais insólito dos pares românticos.
Não conheço alguns dos títulos que disputaram os principais Césares do cinema francês, em confronto directo com Séraphine. Não vi, por exemplo, L’Ennemi Public nº 1, de Jean-François Richet, sobre o gangster Jacques Mesrine, filme que, para vários sectores da imprensa francesa, era o candidato óbvio aos prémios principais. Seja como for, há qualquer coisa de singularmente corajoso no facto de a Academia Francesa ter consagrado um objecto como Séraphine, sobretudo num tempo em que o modelo da “biografia artística” está tão contaminado pelas convenções do telefilme e por essa visão determinista segundo a qual um artista só o é por causa do destino.
Ora, se há aspecto fascinante na vida desta pintora naïf é, justamente, o inverso: trabalhando como criada de limpeza, habitando um meio rural relativamente isolado, distante das grandes convulsões culturais e sociais, para mais marcada por uma dolorosa vida interior (internada, em 1932, num hospital psiquiátrico por sofrer de “psicose crónica”), Séraphine de Senlis foi alguém que viveu contra o negrume do seu próprio destino, conseguindo, face à indiferença de quase todos, fazer valer a originalidade e a beleza da sua arte.
Daí a importância da personagem de Wilhelm Uhde (1874-1947) na afirmação pública de Séraphine e, antes disso, na simples criação de condições práticas para ela praticar e desenvolver a sua vocação pictórica. Coleccionador, galerista e crítico de arte alemão, Uhde soube ver Séraphine para além das rotinas do quotidiano, reconhecendo nos seus quadros a energia de uma linguagem própria. E é uma pequena maravilha o modo como o filme de Martin Provost encena a relação entre a pintora (Yolande Moreau) e o seu mentor (Ulrich Tukur): ela frágil como um animal acossado, ele conseguindo sentir a vibração das formas para além das aparências sociais. Discretos e infinitamente castos, formam o mais insólito dos pares românticos.