domingo, setembro 20, 2009

Séraphine contra o destino

Com o filme Séraphine, Martin Provost convida-nos a percorrer o universo convulsivo de uma pintora exterior a modas, tendências ou movimentos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 de Setembro), com o título 'Uma artista contra o destino'.

Não conheço alguns dos títulos que disputaram os principais Césares do cinema francês, em confronto directo com Séraphine. Não vi, por exemplo, L’Ennemi Public nº 1, de Jean-François Richet, sobre o gangster Jacques Mesrine, filme que, para vários sectores da imprensa francesa, era o candidato óbvio aos prémios principais. Seja como for, há qualquer coisa de singularmente corajoso no facto de a Academia Francesa ter consagrado um objecto como Séraphine, sobretudo num tempo em que o modelo da “biografia artística” está tão contaminado pelas convenções do telefilme e por essa visão determinista segundo a qual um artista só o é por causa do destino.
Ora, se há aspecto fascinante na vida desta pintora naïf é, justamente, o inverso: trabalhando como criada de limpeza, habitando um meio rural relativamente isolado, distante das grandes convulsões culturais e sociais, para mais marcada por uma dolorosa vida interior (internada, em 1932, num hospital psiquiátrico por sofrer de “psicose crónica”), Séraphine de Senlis foi alguém que viveu contra o negrume do seu próprio destino, conseguindo, face à indiferença de quase todos, fazer valer a originalidade e a beleza da sua arte.
Daí a importância da personagem de Wilhelm Uhde (1874-1947) na afirmação pública de Séraphine e, antes disso, na simples criação de condições práticas para ela praticar e desenvolver a sua vocação pictórica. Coleccionador, galerista e crítico de arte alemão, Uhde soube ver Séraphine para além das rotinas do quotidiano, reconhecendo nos seus quadros a energia de uma linguagem própria. E é uma pequena maravilha o modo como o filme de Martin Provost encena a relação entre a pintora (Yolande Moreau) e o seu mentor (Ulrich Tukur): ela frágil como um animal acossado, ele conseguindo sentir a vibração das formas para além das aparências sociais. Discretos e infinitamente castos, formam o mais insólito dos pares românticos.