sábado, setembro 19, 2009

Martin Provost: como filmar a pintura?

Séraphine é o invulgar e fascinante retrato de uma singularíssima pintora. Martin Provost, o realizador, explica os detalhes do seu trabalho -- esta entrevista foi publicada no Diário de Notícias (18 de Setembro), com o título 'A vida de Séraphine de Senlis tem qualquer coisa de universal'.

Como abordar o trabalho de uma pintora? E, mais do que isso, como retratar uma pintora que oscilou sempre entre a singeleza da vida do campo e as sombras da depressão e da loucura? Martin Provost consegue a proeza de filmar Séraphine de Senlis (1864-1942) sem minimizar a complexidade da personagem, fazendo-nos sentir as singularidades do labor artístico. Como ele diz, tratava-se de dar voz a alguém que continua a falar para o nosso presente. Eleito nos Césares como melhor filme de 2008, Séraphine é um dos grandes fenómenos do recente cinema francês.

Como encarou o tratamento da personagem de Séraphine de Senlis? Para si, ela era sobretudo uma personagem histórica ou surgia antes uma modelo poético, quase de fábula?
Na verdade, era um pouco as duas coisas. Nessa medida, pareceu-me que a vida de Séraphine tinha uma dimensão que lhe emprestava qualquer coisa de universal. Daí que eu acreditasse que o filme podia tocar toda a agente.

Que tipo de preparação, e durante quanto tempo, foi necessário para organizar a rodagem de Séraphine?
De facto, na prática, rodámos o filme em dez semanas. É certo que, pela minha parte, trabalhei muito tempo na preparação e, em particular, com Yolande Moreau [intérprete de Séraphine]. Fora isso, posso dizer que tivemos um tempo de preparação absolutamente normal. Aliás, também por isso, o filme não foi muito caro.

O trabalho de composição de Yolande Moreau implicava, necessariamente, opções muito particulares, quanto mais não seja pelos contrastes psicológicos da personagem. Que tipo de composição dramática lhe pediu? Em particular, como a dirigiu para representar a loucura de Séraphine?
Passámos muito tempo juntos antes da rodagem. O nosso trabalho implicou mesmo que fizéssemos, juntos, a trajectória de Séraphine, em Senlis, e, mais concretamente, a sua vida no campo. Analisámos elementos como o canto e a pintura. Mais do que isso: Yolande acompanhou de modo muito directo a equipa de pintores que refez os quadros. Em boa verdade, foi um longo caminho. De tal modo que, quando começámos a rodagem, sentimos que a personagem estava lá. Quanto à loucura, estávamos ambos de acordo: a simplicidade e a verdade seriam sempre os nossos elementos condutores; acima de tudo, não queríamos nem histeria nem narcisismo.

Olhando para a história do cinema, talvez se possa dizer que existe uma tradição francesa do “filme-sobre-a-pintura”. Penso, por exemplo, em títulos como Passion (Jean-Luc Godard), Van Gogh (Maurice Pialat), ou A Bela Impertinente (Jacques Rivette). Essas memórias foram importantes para o seu trabalho?
Sim, sem dúvida. O Van Gogh, de Pialat, é um filme muito importante para mim. Decidi mesmo mostrá-lo a toda a equipa. De facto, essa é uma tradição que decorre da importância que a pintura sempre teve na vida cultural em França.

Podemos dizer que o seu filme está longe de ser um objecto vulgar na paisagem cinematográfica (francesa ou não), além de que é também, de forma muito óbvia, diferente de um telefilme “sobre um artista”. Será que isso trouxe dificuldades acrescidas? Foi uma produção difícil?
Sim e não. Curiosamente, houve uma série de circunstâncias felizes que contribuíram para que o filme pudesse existir. Tive a impressão de estar acompanhado, como se a própria Séraphine, que estava esquecida, quisesse regressar ao nosso mundo porque tinha ainda qualquer coisa a dizer.