Dangerous Game (1993), de Abel Ferrara, é o momento central do trabalho de Madonna como actriz de cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 de Setembro), com o título 'Madonna actriz ou o filme invisível'.
Agora que chegou às salas portuguesas o primeiro filme de Madonna como realizadora (Sujidade e Sabedoria), torna-se inevitável lembrar que a sua trajectória como actriz é muito pouco conhecida. De facto, com filmes melhores ou piores (e há de tudo, como é óbvio), Madonna tem o seu trabalho ligado a grandes momentos de cineastas como Warren Beatty (Dick Tracy), Woody Allen (Sombras e Nevoeiro) e Spike Lee (Girl 6). Mas há na sua filmografia um título absolutamente invulgar que, por uma série de circunstâncias mais ou menos bizarras, se mantém ignorado e, por assim dizer, invisível: estou a pensar nesse insólito, desconcertante e fascinante objecto de cinema que se chama Dangerous Game (1993).
Os problemas de conhecimento do filme estão longe de se poder explicar apenas pela acção do cliché jornalístico (?) que insiste em considerar irrelevante o trabalho de Madonna no cinema. Em boa verdade, quase tudo correu mal na gestação e difusão de Dangerous Game (que, aliás, começou por se chamar Snake Eyes). Desde logo porque, durante a rodagem, Madonna se foi mostrando insatisfeita com as alterações que Ferrara decidiu introduzir no argumento inicial. Ironicamente, como se fosse um perverso jogo de espelhos, ela interpreta uma actriz em conflito com o realizador do filme que anda a rodar. Mais do que isso: o processo de desgaste emocional entre a actriz e o realizador, interpretado por Harvey Keitel, constitui o tema central de Dangerous Game.
O filme foi lançado numa peculiar conjuntura mediática. Madonna, porventura marcada pelas polémicas criadas em torno do seu livro Sex (lançado um ano antes), adoptou um discurso de grande agressividade, vindo a público “denunciar” Ferrara e denegrir o filme. Ferrara respondeu-lhe à letra, responsabilizando-a pela má recepção jornalística e a péssima carreira nas salas dos EUA. Na prática, Dangerous Game viu as suas hipóteses comerciais drasticamente reduzidas, acabando por estrear em muito poucos países (em Portugal, apenas surgiu numa ultra-discreta edição em DVD com o título não muito feliz de Linha de Separação).
Dangerous Game organiza-se em torno de um tema nuclear da obra de Ferrara: a possibilidade de, para além das hipocrisias sociais ou familiares, encontrar alguma verdade nas relações humanas. Mais do que isso: tendo em conta que tudo acontece num universo cinematográfico de “reprodução” dessas relações, o drama nasce da ambivalência que resulta da coexistência entre a transparência afectiva e as suas máscaras. Ou para utilizarmos uma dicotomia que está longe de ser estranha ao universo criativo da própria Madonna: a proximidade da inocência e do pecado.
Nada disto é exterior, afinal, a uma tradição profundamente enraizada em Hollywood, de que Assim Nasce uma Estrela/A Star Is Born (1954), de George Cukor, com Judy Garland e James Mason, poderá ser uma referência emblemática. Dir-se-ia uma tradição masoquista: a de observar os bastidores do cinema como uma máquina de permanente trituração das identidades humanas e, por paradoxal milagre criativo, de revelação dos seus aspectos mais sublimes. Em resumo: Dangerous Game é um filme que continua por descobrir. Contra Madonna e contra Ferrara, se tal for necessário.
Agora que chegou às salas portuguesas o primeiro filme de Madonna como realizadora (Sujidade e Sabedoria), torna-se inevitável lembrar que a sua trajectória como actriz é muito pouco conhecida. De facto, com filmes melhores ou piores (e há de tudo, como é óbvio), Madonna tem o seu trabalho ligado a grandes momentos de cineastas como Warren Beatty (Dick Tracy), Woody Allen (Sombras e Nevoeiro) e Spike Lee (Girl 6). Mas há na sua filmografia um título absolutamente invulgar que, por uma série de circunstâncias mais ou menos bizarras, se mantém ignorado e, por assim dizer, invisível: estou a pensar nesse insólito, desconcertante e fascinante objecto de cinema que se chama Dangerous Game (1993).
Os problemas de conhecimento do filme estão longe de se poder explicar apenas pela acção do cliché jornalístico (?) que insiste em considerar irrelevante o trabalho de Madonna no cinema. Em boa verdade, quase tudo correu mal na gestação e difusão de Dangerous Game (que, aliás, começou por se chamar Snake Eyes). Desde logo porque, durante a rodagem, Madonna se foi mostrando insatisfeita com as alterações que Ferrara decidiu introduzir no argumento inicial. Ironicamente, como se fosse um perverso jogo de espelhos, ela interpreta uma actriz em conflito com o realizador do filme que anda a rodar. Mais do que isso: o processo de desgaste emocional entre a actriz e o realizador, interpretado por Harvey Keitel, constitui o tema central de Dangerous Game.
O filme foi lançado numa peculiar conjuntura mediática. Madonna, porventura marcada pelas polémicas criadas em torno do seu livro Sex (lançado um ano antes), adoptou um discurso de grande agressividade, vindo a público “denunciar” Ferrara e denegrir o filme. Ferrara respondeu-lhe à letra, responsabilizando-a pela má recepção jornalística e a péssima carreira nas salas dos EUA. Na prática, Dangerous Game viu as suas hipóteses comerciais drasticamente reduzidas, acabando por estrear em muito poucos países (em Portugal, apenas surgiu numa ultra-discreta edição em DVD com o título não muito feliz de Linha de Separação).
Dangerous Game organiza-se em torno de um tema nuclear da obra de Ferrara: a possibilidade de, para além das hipocrisias sociais ou familiares, encontrar alguma verdade nas relações humanas. Mais do que isso: tendo em conta que tudo acontece num universo cinematográfico de “reprodução” dessas relações, o drama nasce da ambivalência que resulta da coexistência entre a transparência afectiva e as suas máscaras. Ou para utilizarmos uma dicotomia que está longe de ser estranha ao universo criativo da própria Madonna: a proximidade da inocência e do pecado.
Nada disto é exterior, afinal, a uma tradição profundamente enraizada em Hollywood, de que Assim Nasce uma Estrela/A Star Is Born (1954), de George Cukor, com Judy Garland e James Mason, poderá ser uma referência emblemática. Dir-se-ia uma tradição masoquista: a de observar os bastidores do cinema como uma máquina de permanente trituração das identidades humanas e, por paradoxal milagre criativo, de revelação dos seus aspectos mais sublimes. Em resumo: Dangerous Game é um filme que continua por descobrir. Contra Madonna e contra Ferrara, se tal for necessário.