segunda-feira, junho 01, 2009

Manuela Moura Guedes: um sintoma

Afinal, as reflexões sobre o Jornal Nacional das sextas-feiras, apresentado por Manuela Moura Guedes, na TVI, terão excedido as expectativas dos mais cépticos (nos quais me incluo). De facto, não foram apenas Os Contemporâneos a abordar o tema. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social emitiu um comunicado, instando a TVI "a cumprir de forma mais rigorosa o dever de rigor e isenção jornalísticas, aqui se incluindo, nomeadamente, o dever de demarcar claramente os factos da opinião". No mesmo sentido, considerando que "o Jornal Nacional - 6ª feira, da TVI, bem como o desempenho da sua apresentadora, são passíveis de reprovação por não respeitarem princípios éticos e deontológicos que norteiam o exercício da profissão", exprimiu-se o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas. Manuela Moura Guedes deu entrevistas sobre o seu trabalho (aqui resumidas num texto do DN). José Alberto Carvalho, director de informação da RTP, veio também avaliar o trabalho de Manuela Moura Guedes, definindo-a como "um exemplo de péssimo jornalismo".

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Tudo isto, mais a avalancha de textos publicados na Net (nem sempre muito edificantes, hélas!), leva-me a sentir-me cúmplice de algo que, em boa verdade, não gostaria de favorecer, nem por mera distracção.
Bem sei que o meu texto sobre Os Contemporâneos [link em cima] não passa de uma humilde peça solta numa vastíssima teia de opiniões e contra-opiniões. Seja como for, não me posso resguardar na indiferença quando verifico que a avaliação corrente do estilo e valores da informação da TVI possui um perverso subtexto: o de recalcar uma reflexão séria sobre os valores dominantes de toda a informação televisiva que se pratica no nosso país. Insisto: toda.
Mais ainda: a fulanização dos problemas dessa informação (e poderia ser, não Manuela Moura Guedes, mas o mais anónimo escrevente de uma qualquer redacção) não passa de uma maneira tendencialmente pusilânime de evitar lidar com o estado do jornalismo televisivo, aqui e agora — confundir o sintoma com as raízes da doença é uma velha arma da hipocrisia social.

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Qual é a doença infantil do telejornalismo?
É a de uma longa, metódica e aparentemente irreversível mudança de paradigmas na televisão que, em todo o caso, passa de forma decisiva pela experiência do papel e, mais concretamente, pelo jornal O Independente (1988-2006).
Qual é, então, a herança de O Independente? Podemos resumi-la através do triunfo de três novos valores:
1 - A vocação policial do jornalismo: a investigação jornalística passa a ser entendida como um exercício equivalente a um inquérito policial, desse modo exponenciando uma mentalidade social de "denúncia".
2 - O jornalismo como tribunal popular: a investigação desemboca num processo mais ou menos espectacular de exposição pública de "culpados", convidando-se implicitamente o leitor/cidadão a participar num julgamento automático dos investigados (isto é, dos protagonistas das notícias).
3 - O anedótico como complemento "inocente" da informação: tudo e todos são sempre susceptíveis de serem reduzidos à pura irrisão, confundindo-se a generalização pueril da caricatura com a transparência informativa e social.

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Bem sei que, ao escrever isto, corro o risco de ser objecto de uma das armadilhas mais ignóbeis do próprio jornalismo cuja ideologia tento descrever, compreender e criticar: o de ser citado de forma parcelar, superficial e, também ela, anedótica.
Não estou a tentar demonizar seja quem for, muito menos a simplificar o multifacetado protagonismo social desse mesmo jornalismo. Repito, por isso, uma ideia, que já estava expressa no referido texto sobre Os Contemporâneos [foto]. A saber: que podemos (e devemos) admitir que há uma fortíssima verdade factual naquilo que a TVI noticia, do mesmo modo que podemos (e devemos) reconhecer que havia fortíssimas verdades factuais no jornalismo que se praticou em O Independente.
Ou seja, e para descansar os velhos (e novos) do Restelo que, na falta de ideias, estão sempre prontos a gritar que a "censura" está a voltar: trata-se de defender o estado de coisas que permite que existam todas as TVIs que se possam imaginar, sem que isso implique qualquer desistência no labor de resistir aos valores que o seu trabalho arrasta. Mais ainda: considero ser imperioso pensar esse jornalismo sem confundir a crítica contundente dos seus valores com qualquer tipo de fulanização torpe ou culpabilização individual, muito menos com qualquer discussão obscena sobre a honestidade deste ou daquele profissional.
O que está em jogo não se deixa descrever através de retratos moralistas, seja de quem for. O que está em jogo é infinitamente mais fundo e mais perturbante: tem a ver com a mediatização sistemática, isto é, com a promoção pública de uma vida social baseada na desconfiança, na insinuação e, em última instância, no quotidiano menosprezo pela mais básica dignidade humana — afinal de contas, temos uma paisagem televisiva com protagonistas e decisores que aceitaram ser contaminados pela degradação de valores promovida pelo Big Brother e, genericamente, pela grosseria de muitos reality shows.

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Não tenho ilusões sobre o carácter minoritário destes pontos de vista. Sei que, com absoluta e legítima convicção, muitos jornalistas de todos os quadrantes e gerações referem regularmente O Independente como uma referência sagrada do jornalismo em Portugal. Escusado será dizer que não escrevo para "convencer" seja quem for (aliás, vale a pena referir que esse mesmo jornalismo promove a ideia de que o convencimento é um valor crítico — ao longo de mais três décadas, encontrei muito boa gente, sincera e preocupada, incluindo no interior da classe jornalística, interpelando-me por um ou outro texto sobre cinema, pressupondo que eu estou à espera que os outros pensem, não com a sua cabeça, mas com a minha...).
Escrevo, isso sim, para reiterar um rudimentar princípio de trabalho: a defesa de uma filosofia da verdade como uma filosofia de construção da verdade.
Dito de outro modo: a verdade não é uma evidência que o real mantenha em gestação, ou guarde em estado latente, apenas à espera que cada um de nós — porventura um dedicado, honesto e exigente jornalista — a colha e revele ao mundo. A verdade, mesmo quando cristalina, unívoca e irrefutável, não é uma boa razão para deixarmos de interrogar o jornalismo como uma actividade que resulta de escolhas e aplica linguagens — desse modo desenhando a paisagem das suas próprias responsabilidades discursivas.


Que escolhas? Ou melhor: que critérios de escolha? Pois bem, esses que favorecem o triunfo noticioso (?) do fait divers, a secundarização das grandes questões políticas e sociais em favor do anedotário da "politiquice", a marginalização das actividades artísticas e a consagração quotidiana do futebol como modelo dominante de comunicação e padrão único de filosofia de vida (numa semana, quantas horas são gastas, em todas as televisões, com treinadores e jogadores que vêm falar do seu "sofrimento" e de como "trabalham" muito?).
Ainda assim, convém não simplificar: tais escolhas são apenas uma pequeníssima ponta do nosso iceberg telejornalístico. Porque o que, realmente, importa questionar são, não as notícias em si (não há notícias em si, convém esclarecer), mas os modos de as dizer, construir, organizar — linguagens, linguagens, linguagens.
Ora, sabemos que discutir o jornalismo como sistema de linguagens é uma hipótese directa ou implicitamente rejeitada pela maioria dos jornalistas televisivos — para eles, uma câmara à frente seja do que for é uma garantia automática e indiscutível de "verdade". Vale a pena recordar-lhes que a cultura cinematográfica combate esse infantilismo estético há mais de um século.