A série Os Contemporâneos continua a escalpelizar a nossa realidade televisiva -- este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 de Maio).
Quando vejo Os Contemporâneos (RTP1) a desmontar a pose, o estilo e o discurso de Manuela Moura Guedes no Jornal Nacional (TVI), não posso deixar de pensar no insólito de tal desmontagem. De facto, ao fazê-lo, assumem uma atitude de salutar contundência crítica que, em boa verdade, devia distinguir a própria classe jornalística (que, salvo honrosas excepções, se mantém indiferente à deturpação televisiva dos seus valores mais viscerais).
Acima de tudo, Os Contemporâneos conseguem fazer passar a mensagem de que importa superar a visão do jornalismo como um trabalho que, apenas porque celebra o fulgor da verdade, poderia ser dispensado da sua continuada problematização social. Que é como quem diz: mesmo admitindo que o Jornal Nacional seja feito apenas com materiais informativos legitimados por alguma fonte fidedigna, mesmo assim, isso não nos deve impedir de afirmar, serenamente, que se trata de um mau serviço prestado ao jornalismo. Porquê? Porque o jornalismo não se confunde com a insinuação, o alarmismo e a redução da realidade a uma espécie de prisão simbólica em que as personalidades públicas só podem existir como figuras angelicais de inocência ou monstros horrorosos de culpabilidade. Na prática, o “Jornal de Sexta” encarnou como paradoxo vivo de um delírio gerador de inevitáveis energias de compensação que, como é óbvio, favorecem os seus alvos preferenciais (José Sócrates e o Partido Socialista).
E é espantoso, insisto, que seja um programa como Os Contemporâneos a revelar o talento quase solitário de, em televisão, nos fazer reflectir sobre este estado de coisas. Trata-se, aliás, de um excelente exemplo para nos ajudar a perceber que não há nenhum “enfraquecimento” do humor por já não haver censura... Tal visão ignora que o tecido social se faz tanto de discursos explícitos como implícitos e que a própria noção de real é algo que permanece sempre em aberto (mesmo no espaço mais democrático). No caso do jornalismo, e em defesa do jornalismo, é preciso reafirmar o jornalista como um agente social que se deseja exigente, mesmo contundente, mas que não se pode confundir com um oráculo de verdade. Para tragédias gregas, já tivemos o Euro 2004.