quarta-feira, junho 17, 2009

Sumol com Estaline

Somos, afinal, um país que contabiliza 62% de abstenções num acto eleitoral. Dito de outro modo: num país assim, a história como alimento real e cimento simbólico da comunidade é um valor fraco, para não dizer agonizante. Seja como for, a actual campanha da Sumol supera todas as expectativas mais cépticas ou apenas mais irónicas...
Desde logo porque, sob o signo do "alternativismo" (?), tal campanha começa por apostar num simulacro de mobilização político-social. Com palavras de incitação: "Adere ao movimento". E também com um verdadeiro programa de acção: "Visita a cidade zero / e vive o alternativismo / ao máximo / sem compromissos / 100 ideias, zero açúcar / adere à causa." Demonstrando uma triunfante ligeireza iconográfica, a campanha vai ao ponto de incorporar uma imagem de Josef Staline [foto de uma actividade promocional]; há também um cartaz com uma figura que, salvo erro, evoca Mao Tsé-Tung.
Este "estalinismo" que, alegremente, se confunde com as festas do Verão justifica que paremos um pouco para reflectir. Não que eu pretenda sustentar a ideia de que o desastrado infantilismo da campanha defende aquele que foi um dos maiores ditadores do século XX, entre outros crimes responsável por milhões de mortos no Gulag da URSS. Também não é minha intenção favorecer essa dicotomia simplista que se pode encontrar em alguns discursos emanados da nossa cena política e só sabe lidar com as imagens como entidades que importa "leigitimar" ou "proibir" — acontece que as imagens estão aí e é melhor viver com elas, pensando-as, do que virar-lhes as costas.
O que triunfa neste modo de conceber/praticar a publicidade é a arbitrariedade da própria herança histórica. Aliás, já nem sequer há história: apenas sobrou um resto caricatural, desligado de qualquer olhar sobre a história, isto é, entregue a um hedonismo banal que se alimenta do seu próprio vazio de forma & conteúdo. Tudo isto, como sempre, visando um público jovem e, mais do que isso, executado em nome de uma ideia "festiva" de juventude. Em boa verdade, a pergunta que fica é esta: como são — e o que podem ser — os jovens que descobrem Staline como modelo de consumo de um refrigerante?

* * * * *

PS - Imagino alguns leitores destas notas a suscitar paralelismos, talvez perguntando: e as t-shirts com Che Guevara? Ora, não está em causa que, também aí, podemos encontrar um recalcamento da história (para percebermos a complexidade do que está em jogo, lembremos o belíssimo filme de Steven Soderbergh), recalcamento que conduz à exaltação abstracta do símbolo. Mas importa reagir contra o tique televisivo que nos leva a supor que as questões se repetem, apenas porque encontramos um laço simbólico entre elas. De facto, além das diferenças históricas e biográficas que separam Staline e Guevara, a utilização de Guevara como símbolo é, no exemplo evocado, um gesto que propõe uma certa apropriação da história. Podemos discutir os modos e efeitos dessa apropriação, mas o fenómeno nada tem a ver com a lógica de esvaziamento cognitivo que preside à concepção da publicidade acima referida.