GOYA O Cão [fragmento] 1820-23
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1. Blogosfera. Um dos efeitos correntes da blogosfera — em grande parte induzido pela ideologia televisiva dominante — é a tribuna-lização de todas as questões. Assim, predomina a noção de que qualquer interrogação do funcionamento e efeitos da blogosfera tem como objectivo último (e único) julgar os "prevaricadores" e castigá-los na praça pública... A esmagadora maioria das intervenções nesse sentido são sintomaticamente anónimas e tendem a instalar maniqueísmos em que a "crítica" é sempre o alvo preferencial. Explicita ou implicitamente, empenham-se em "denunciar" os respectivos malefícios a partir de um pressuposto anedótico mas, há que reconhecê-lo, formulado com profundíssima convicção: para tais "denúncias", o crítico, seja ele quem for, trabalha para promover a lavagem do cérebro dos outros (e o "denunciante", mesmo o mais cobardemente anónimo, assume-se sempre como vítima eleita).
2. Pensamento(s). Não é simples evitar este imbróglio, quanto mais não seja porque o seu ressentimento pressupõe que não há boa fé em nenhum interlocutor que enuncie uma ideia diferente. Permito-me, por isso, referir o eco que os posts anteriores encontraram nas interessantíssimas propostas de reflexão de Daniel Carrapa, primeiro em 'Blogosfera de terceira geração', depois em 'Auto-regulação na blogosfera'. Aliás, no primeiro desses posts, para além de várias intervenções muito pertinentes, há uma (anónima, hélas!) que condensa exemplarmente os mecanismos comuns de esvazia-mento de pensamento:
>>> Estes senhores que criticam a qualidade do conteúdo dos blogues podem ser de várias espécies: os que navegam passivamente na internet em vez de criar a onda; os que criticam os conteúdos, mas produzem conteúdos iguais ou piores; há também aqueles com tiques de ditadores, que acham que só se devia postar aquilo que eles próprios dizem que é bom; resumindo, esses que criticam querem é aparecer!
No seu primeiro post, Daniel Carrapa chama também a atenção para um texto de José Pacheco Pereira que, como indica o seu título — A bloguização da comunicação social —, aborda a questão mais espe-cífica, mas tão determinante, das interacções entre impren-sa "tradicional" e blogosfera.
3. O(s) sujeito(s). A questão que se reabre, assim, é a da regulação (ou, se preferirem, auto-regulação) da blogosfera. Em todo o caso, gostaria de explicitar que essa não é, para mim, a questão determinante — em boa verdade, nem estou seguro que seja útil formulá-la em termos especificamente políticos. Quero eu dizer que importa reflectir sobre o que acontece antes. Antes de quê? Pois bem, antes da própria proliferação de discursos que entendem (e vivem) a blogosfera como um palco aberto, sem coordenadas nem fronteiras, afinal visceralmente pornográfico.
E o que acontece é, a meu ver, uma deriva do próprio conceito de sujeito. Deriva que funciona, sobretudo, como apagamento (ou desconhecimento?) de laços sociais.
Um exemplo entre milhões:
>>> É muito bonita a maneira como você fala das tuas dores. Gostei especialmente do "basta aceitar o silêncio e esperar". É bem melhor que as depressões vividas nos consultórios dos psis. Acredita: seu blog me dá força para continuar. Todos os dias. Sem as invejas dos outros.
>>> É muito bonita a maneira como você fala das tuas dores. Gostei especialmente do "basta aceitar o silêncio e esperar". É bem melhor que as depressões vividas nos consultórios dos psis. Acredita: seu blog me dá força para continuar. Todos os dias. Sem as invejas dos outros.
O que é terrível em discursos deste género é a crença de que a blogosfera — enquanto espaço público — é uma espécie de janela cândida e transparente, porventura redentora, para a exposição da "verdade" individual (no completo alheamento de qualquer interacção social, tecida de ideias e corpos). Na prática, isto significa o triunfo pleno, devastador e normalizador da ideologia do Big Brother: ninguém existe a não ser que se exponha enquanto marioneta de emoções. Mais ainda: é suposto essa exposição, com toda a sua sinistra ética "libertadora", ser vivida voluntariamente.
Vale a pena deixar, para já, estas palavras de Serge Magel sobre a nova "superstição":
>>> A partir do momento que a sociedade está limitada no seu poder simbólico, a superstição torna-se inevitável e, nessa me-dida, necessária para compensar o desequilíbrio que a constitui [...] e é então que a sociedade civil laica encontra esse tipo particular de equilíbrio nas religiões pessoais que o indivíduo institui por si mesmo e para si mesmo.
> citado por Paul Virilio, em L'Art à Perte de Vue (Galilée, Paris, 2005)