sábado, junho 03, 2006

Dos maus leitores

ESCREVER. Creio que partilho com muita gente um ponto de vista muito simples sobre o efeito daquilo que escrevo, nomeadamente enquanto crítico de cinema (ou televisão): trata-se de um discurso necessariamente subjectivo, sustentado com o talento (muito, pouco, nenhum…) que me é possível aplicar e não espero nunca — sublinho: nunca — qualquer tipo de unanimidade, muito menos de “consagração”, face à insuperável parcialidade daquilo que escrevo (parcialidade, entenda-se: assunção das consequências decorrentes de um exercício de pensamento que não pretende confundir-se com a singularidade e a legitimidade de qualquer outro pensamento).

LER. Dito isto, há que dizer também que, se é muito frequente assistir aos mais variados processos de intenção (tendencialmente insultuosos) dirigidos a quem, mal ou bem, exerce o trabalho crítico, poucas vezes se diz alguma coisa sobre a violentíssima arbitrariedade que, com crescente frequência, circula por alguns discursos de alguns leitores.

QUE É UM MAU LEITOR? Sim, porque importa deixar bem claro que há maus leitores. Que é um mau leitor? Deixemo-nos de infantilismos: o leitor que discorda de uma qualquer leitura crítica não é um mau leitor — é mesmo, potencialmente, um dos melhores leitores possíveis, já que mantém uma relação dialéctica com aquilo que lê e parte, por sua conta e risco, para a construção de um ponto de vista tão pessoal, e tão irredutível, quanto o do próprio crítico. O mau leitor é aquele quer atribuir uma força de lei ditatorial àquilo que diz, ou escreve, a partir, não das suas ideias, mas em função de um “erro” de origem do próprio crítico. Infelizmente, a facilidade e os automatismos da Internet têm multiplicado a irresponsabilidade de tais discursos.

EXEMPLOS (1). Há um problema de estupidez — entenda-se: promoção da ignorância — com o qual é preciso lidar. Não tem nada a ver com a tradicional, salutar e democrática divergência de pontos de vista sobre os filmes. Decorre, isso sim, do modo como, tantas vezes (e tantas através do poder avassalador da televisão), se promove a pura mentira como lei universal. Assim, por exemplo, quantas vezes não ouvimos já esse lugar-comum segundo o qual os filmes de Manoel de Oliveira são de um duração desmedida que obriga os espectadores a ficar “de um dia para o outro” nas salas de cinema? De que estamos a falar? Dos filmes e das suas qualidades? Nada disso, e cada um tem inteligência suficiente para pensar o que muito bem entender sobre tais filmes. Muito objectivamente, estamos a falar de um realizador de cinema cujas últimas doze longas-metragens são todas — sublinho: todas — de duração inferior a qualquer um dos quatro títulos da série… Harry Potter!

EXEMPLOS (2). Ultimamente, este tipo de delírios tem-se instalado como uma espécie de vírus que se vai papagueando (e propagandeando) como se as mais brutais mentiras pudessem dar entrada na categoria das imaculadas e incontestáveis verdades. A propósito de O Código Da Vinci, por exemplo, diz-se e repete-se que a crítica menospreza os filmes que… dão dinheiro! E já nem se trata de relembrar que “a” crítica é coisa que não existe: existem “os” críticos, necessariamente (e salutarmente) diversos e contraditórios. Trata-se, sobretudo, de perguntar: em que mundo é que vivem as pessoas que têm gosto em avançar com estas “ideias” como se estivessem a reproduzir uma verdade divina?

EXEMPLOS (3). Uma curiosa e ancestral variação sobre esta última versão é a de que os críticos, por sistema, atacam os blockbusters americanos. Será que quem diz/escreve semelhantes grosserias tem lá em casa os dossiers completos de tudo — sublinho: tudo — o que se escreveu sobre todos — sublinho: todos — os blockbusters? Dou comigo a pensar no que escrevi sobre aquele que é, historicamente o primeiro blockbusterTubarão (1975), de Steven Spielberg (na foto) — e pergunto-me se, nessa altura, os que agora se insurgem contra este mundo e o outro já tinham nascido?... Podíamos, aliás, multiplicar as variações: sempre esteve na moda proclamar que os críticos não gostam de super-heróis (sugiro que se recomece pelo dossier de 1978, sobre o Superman, de Richard Donner); ou que os críticos menosprezam os jogos de vídeo (meu Deus!, parece que tanta gente esqueceu as páginas e páginas que se escreveram sobre a trilogia Matrix; já agora, sugiro outro recuo no tempo, a 1982, para consultar aa abordagens críticas de Tron).

ESCOLA. Não quero simplificar nem quero abusar da vossa paciência com esta nota (breve pela complexidade do que está em jogo, mas longa para este espaço). E não posso ignorar que, obviamente, as inevitáveis divergências sobre este ou aquele filme não passam de um caso particularíssimo de um problema mais geral. A saber: a perda do gosto escolar pelo confronto de ideias e, sobretudo, a capacidade de encarar a diferença do outro como natural e, sobretudo, inevitável. Em última instância, estamos, claro, perante um problema de educação: não a educação dos decretos oficiais ou dos salamaleques hipócritas, mas essa educação interior que, em última instância, não teme a diferença do outro. Ou, se quiserem: do Outro.

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