quarta-feira, janeiro 28, 2009

"Second Life": um filme de produtor


1. UM FILME DE PRODUTOR. Projectado ontem, dia 27, para a imprensa (estreia amanhã), Second Life é mesmo um filme de produtor — inevitável seria, não apenas porque o produtor Alexandre Valente co-assina a realização com Miguel Gaudêncio, mas também porque ele próprio se assumiu como principal protagonista de um debate que tem tido, pelo menos, o mérito de relançar algumas ideias, incluindo dos que se mantêm fiéis a uma visão maniqueísta, preferindo distribuir culpas pelo campo da crítica.

2. QUE TALENTO? Dito isto, convenhamos que há algo de desconcertante em descobrir Second Life. Porquê? Porque, pelo menos em termos estratégicos, o filme revela algumas opções curiosas — de produtor, precisamente — que poderiam servir para algo de minimamente coerente. Assim, Alexandre Valente foi buscar personalidades como Acácio de Almeida (director de fotografia) e Bernardo Sassetti (autor da música) que não são propriamente destituídos de qualidades. Bem sabemos que um filme, de qualquer nacionalidade, não é uma mera soma de talentos. Em todo o caso, Second Life teria pelo menos fundamentos para ser um objecto de concepção sólida, porventura correspondendo aos modelos de um cinema europeu de raiz popular cujas tradições são mais que respeitáveis.

3. QUE CULTURA POPULAR? Por que é que nada disso resulta?
Primeiro, porque Second Life é um filme obcecado pela criação de cenas de "impacto" (ditas "escaldantes"), opção que neste caso se confunde com alguns banalíssimos momentos de nudez cuja subtileza sexual e densidade erótica conseguem ser menos interessantes que a de um vulgaríssimo anúncio televisivo de desodorizan-te. Há algo de inapelavelmente pueril quando se filmam assim os corpos, esquecendo que, desde O Último Tango em Paris (1972) até aos nossos dias, o erotismo na cultura popular é um elemento tão importante quanto complexo e multifacetado.
Depois, Second Life é um filme que aposta, não nas matrizes do cinema popular que tenta revitalizar, mas sim em modelos de carácter experimental. Dito de outro modo: esta história do homem que "vive-duas-vezes" convoca modelos de experimentação nar-rativa — enraizados nos tempos heróicos do Cinema Novo, em particular na Nova Vaga francesa (Resnais, Godard, etc.) — em que, desde a fragmentação das sequências até à montagem não linear, estão presentes todos os pressupostos habitualmente atribuídos ao cinema que muitos, por menosprezo, chamam de "intelectual". Como é óbvio, uma vez mais, nada disso dá garantias de resultados interessantes, sobretudo quando, como aqui acontece, não há capacidade de construir personagens, de organizar situações dramáticas, enfim, de dirigir actores.

4. QUE ESTRATÉGIA? O resultado é desastroso. Insolitamente, compreende-se que, com outro pensamento e, sobretudo, com outra lógica menos "sensacional", a estratégia de Alexandre Valente poderia ser a base para qualquer coisa de minimamente consistente (e sou o primeiro a ter consciência que a eventual citação desta última frase fora do seu contexto pode favorecer toda a estupidez que continua a querer descrever — e resolver — os dramas do cinema português como uma guerra entre "cinema comercial" e "cinema de autor").

5. MEMÓRIA(S). É evidente que não faz sentido especular sobre todos os "filmes-que-se-pode-riam-fazer". Mas podemos lembrar que grandes tradições populares do melhor cinema europeu, a começar pela italiana dos anos 50/60, se enraizaram numa imensa abertura criativa, sem preconceitos de abraçar todos os géneros e todas as tendências — afinal de contas, Dino de Laurentiis é produtor histórico de Federico Fellini, Mario Monicelli e Dino Risi, e também de títulos de raiz americana como Serpico (Sidney Lumet) ou Dune (David Lynch)...