segunda-feira, janeiro 26, 2009

Que fazer com "Second Life"?

Antes de ser um filme, Second Life — ou melhor, Second Life enquanto fenómeno de promoção/divulgação — é um objecto que coloca questões mais globais sobre a existência do cinema português e, em particular, sobre a sua vida económica e a sua identidade político-cultural. Importa, por isso, tentar ver/pensar para além da dimensão mais imediata das imagens — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 de Janeiro), com o título 'A ideologia de Alexandre Valente'.

Há um novo sistema de pensamento no ci-nema português e o produtor Alexandre Valen-te é o seu principal ideólogo. O lançamento do seu filme Second Life (a estrear na quinta-feira, dia 29, ainda não objecto da habitual projecção para a imprensa) tem servido de pretexto para a explanação dos seus pres-supostos, argumentos e valores.
Em boa verdade, trata-se de uma velhíssima e retrógrada forma de pensar, quase tão antiga quanto a existência do cinema português. Mas está a viver um momento de grande euforia, voltando a por em marcha os seus maniqueísmos, a começar por algumas anquilosadas dicotomias.
A primeira dessas dicotomias é a que contra-põe “cinema de autor” (suspeito e economica-mente inviável) a “cinema comercial” (sempre do lado do povo, sempre com salas cheias). Escusado será dizer que a história, portuguesa ou não, desmente tal dicotomia, desde logo em termos meramente descritivos. Há muitos exemplos possíveis, mas lembremos apenas que um dos pais do cinematógrafo, David W. Griffith [foto], foi um grande revolucionário da linguagem fílmica e também um dos criadores do mais poderoso modelo de indústria & comércio (Hollywood, hélas!).
A segunda dicotomia decorre da anterior e joga-se entre os filmes para “intelectuais” e os filmes “comerciais”. Nicolau Breyner, um dos actores de Second Life, proferiu mesmo uma frase que ajuda a compreender as falácias de tal raciocínio: “O público português está ávido de cinema comercial.” É, de facto, uma espantosa frase que consegue evitar lidar com dois problemas fulcrais: primeiro, que a existência de um cinema economicamente viável não se pode definir a partir dos números de bilheteira de um filme (seja ele qual for), uma vez que pressupõe todo um pensamento político-cultural sobre estruturas de educação, produção e difusão; segundo, que o entendimento do “público” como uma entidade estável, global e massificada implica, tanto em termos políticos como no plano do marketing, uma cegueira total face à imensa fragmentação do mercado cinematográfico.
Second Life poderá ser um esplendoroso objecto de cinema e, com ele, Alexandre Valente poderá encontrar um lugar na longa história dos grandes produtores de cinema, de David O. Selznick [foto] a Paulo Branco. Mas não é isso que está em jogo. Aliás, pressupor que os dramas do cinema português dependem dos juízos de valor que possamos formular sobre um qualquer filme é uma outra falácia que ninguém conseguiu vencer, nem mesmo os políticos empenhados em superar os conceitos mais mesquinhos da vida cultural portuguesa (e lembro, mesmo com todas as opções eventualmente discutíveis, o esforço para a implementação de uma genuína política cultural desenvolvido por um governante como Manuel Maria Carrilho).
Agora, no apogeu de Alexandre Valente, não me choca que ele tenha uma visão tão simplista do cinema português: está apenas a ser coerente. O que me choca é não haver mais ideias para lançar na praça pública, em particular de muitos cineastas que sempre se demarcaram deste tipo de valores. Um dia destes teremos um cinema português reduzido a “cenas escaldantes” e “biografias históricas”, quer dizer, completamente dissolvido na televisão mais medíocre... Quando isso acontecer, lembro aos mais desesperados que haverá sempre uns patetas de serviço para serem acusados de todos os males. Quem? Os críticos, claro.