segunda-feira, janeiro 19, 2009

O cinema português e a sua nudez

Diz-me como tratas as imagens...
Este é um fragmento do cartaz do filme Contrato, de Nicolau Breyner. Nele se vê a actriz Cláudia Vieira numa cena (em que dialoga com o actor Pedro Lima). Veja-se o fotograma mais ou menos correspondente dessa mesma cena e repare-se como a imagem do seio da actriz foi alterada no cartaz.


Parece um incidente anedótico. E é-o, sem dúvida: é mesmo um desses detalhes que se desagrega face ao riso imenso sobre o qual teorizou Bataille, a partir do momento em que, há mais de meio século, escreveu sobre o erotismo como algo que nos encaminha para "o vazio inalcançável da morte".
Mas é difícil não atribuir um valor sintomático à sua menoridade anedótica. De quê? É isso que importa discutir. Dir-se-ia que houve um movimento de pudor na concepção de um objecto (um cartaz) que pode ser visto nos lugares mais diversos e, por assim dizer, mais generalistas. Mas que pudor é esse que esconde o que foi filmado? A alteração da imagem decorre de uma estranha incapacidade de assumir publicamente aquilo que, de facto, está no filme.
A situação complica-se se nos lembrarmos que há todo um discurso sobre o cinema português — e, não poucas vezes, do interior do cinema português — que, explicitamente ou não, garante que os espectadores aparecerão se houver "mulheres nuas" nos filmes (sendo a expressão "cenas escaldantes" um eufemismo corrente de tal pressuposto). Em boa verdade, não se compreende que quase ninguém reaja à violência machista de tal discurso, igualmente degradante para mulheres e homens. Porquê? Primeiro, porque trata cada mulher como uma soma idiota de carne e hormonas. Depois, porque reduz os homens a estúpidos predadores sexuais.
Não estou a dizer que o filme Contrato faz isso, muito menos que qualquer sugestão do género tenha passado pelas intervenções públicas de Nicolau Breyner (muito sérias e coerentes, mesmo se reflectem uma visão dos problemas do cinema português que não partilho). Estou a dizer, isso sim, que me parece esteticamente pueril e formalmente inconsistente esta concepção de cinema — ou, pelo menos, de um filme — que parece querer existir no mercado numa espécie de denegação da sua própria materialidade.
Repare-se ainda: nada disso tem a ver com essa discussão patética (na maior parte das vezes apenas pateta) que, ciclicamente, reaparece a propósito dos filmes e, em particular, dos conteúdos televisivos. É a discussão sobre o "muito" ou o "pouco" que se deve mostrar dos corpos. Aliás, o imaginário televisivo português continua a alimentar essa ideia sinistra, porque eivada de menosprezo pela dimensão humana, segundo a qual mostrar alguma forma de nudez é, automaticamente, cometer uma enorme "ousadia"... Basta ver as telenovelas, com toda a sua visão simplista e reaccionária das relações humanas, para percebermos que a nudez (como as t-shirts ou os smokings) não são garantia automática de coisa nenhuma.
É uma discussão herdada das zonas mais remotas do nosso imaginário religioso e político, discussão essa que, quase sempre, redunda numa espécie de avaliação "métrica" do que se vê ou não vê... Miséria de pensamento. A nudez de um filme de Bergman ou Hitchcock (sim, Hitchcock — procurem se nunca repararam) não é "muita" nem "pouca": está lá exactamente, rigorosamente e intencionalmente pela mesma necessidade dramatúrgica com que está a mais enroupada das personagens.
O que este incidente reflecte é a brandura sem alma de um cinema que não tem imagens fortes para defender, para expor, para desafiar o seu espectador para algum acontecimento. Nesse aspecto, aliás, Contrato é um filme de total fingimento estético. O modo como o seu cartaz trata as suas imagens — incluindo a imagem de um corpo — é disso a ilustração directa e irremediavelmente reveladora.