segunda-feira, janeiro 19, 2009

Cinema português? Que cinema português?

Chegaram às salas dois novos filmes portugueses: Veneno Cura e Contrato. Vale a pena voltar a perguntar que conceitos de cinema (português) por eles circulam — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 de Janeiro), com o título 'Que histórias conta o cinema português?'.

Culpado me confesso. Não só insisto em discutir o modo como são formulados os problemas do cinema português (na certeza de que a sua avaliação começa na respectiva formulação), como não escondo que me sinto interior a tais problemas. Trabalho também em cinema, nomeadamente como argumentista, e não tenho dúvidas que muitos profissionais do cinema português consideram o meu trabalho irrelevante ou mesmo inapelavelmente medíocre.
Tudo bem. Mas a questão não é essa. Quero eu dizer: os eventuais juízos negativos sobre o meu trabalho não são uma boa justificação para recusar enfrentar as questões que se colocam (até porque nunca invoquei nem invocarei esse trabalho como padrão universal seja do que for). E as questões que se colocam começam numa muito velha interrogação. A saber: que histórias têm os filmes portugueses para contar?
Creio que vale a pena repetir tal interrogação a propósito de duas estreias recentes: Veneno Cura, de Raquel Freire, e Contrato, de Nicolau Breyner. E repare-se: não estou a invocar, nem de longe nem de perto, essa ancestral equação que leva a fazer equivaler as eventuais grandes receitas de bilheteira com aquilo que deveria ser um “padrão” para o cinema português. Mais do que nunca, importa separar as águas.
Uma coisa é defender a criação de um sistema de produção e promoção que favoreça uma presença forte de todos os filmes portugueses no mercado (coisa que faço há mais de trinta anos, pelo que, nesse campo, dispenso lições de moral). Outra coisa, bem diferente e vergonhosamente demagógica, é considerar que o sucesso de bilheteira de um filme, seja ele qual for, impõe regras a todos os outros (confundir estatísticas financeiras com modelos artísticos e estratégias culturais decorre de um primarismo argumentativo que, desgraçadamente, nenhuma força política, de governo ou oposição, tem coragem de questionar).
Veneno Cura é uma penosa colecção de lugares-comuns sobre os conflitos en-tre “masculino” e “feminino”. Mais exactamente, trata-se de um filme que defende a dignidade das mulheres, mas é difícil compreender a operaciona-lidade (filosófica ou afectiva) de tal defesa quando as personagens femini-nas são tratadas como vítimas “auto-máticas” dos homens, enquanto estes se dividem entre os “artistas”, mais ou menos pueris, e os frequentadores da “noite”, obrigatoriamente malvados e corruptos.
Quanto a Contrato, a sua tentativa refaz um erro de avaliação industrial e dramatúrgica que, entre nós, se repete em ciclos mais ou menos regulares. Pode resumir-se tal erro numa pergunta de puro desespero conceptual: como acreditar que é possível concretizar os mecanismos narrativos e espectaculares do policial “à americana” quando não temos tradição de o fazer, estúdios ou meios técnicos e humanos para o conseguir?
Ambos os filmes decorrem de uma imensa boa vontade: Veneno Cura acredita na defesa essencial da identidade feminina; Contrato quer oferecer um espectáculo genuíno e contagiante. Por que sentimos, então, que não têm aquilo que nos querem dar? Eis outra renovada interrogação. Individual e colectiva. Estética e cultural.