Além do mais, não partilhamos a visão populista segundo a qual a proliferação arbitrária de respostas e contra-respostas nos blogs constitua, em si mesmo, um ganho democrático. Se é de disso que se trata, não vemos que a abertura de espaços à banalidade e à difamação seja um bom serviço prestado a qualquer componente democrática. As excepções — isto é, aqueles que têm realmente ideias para exprimir — podem sempre chegar-nos através do mail do blog (e têm sido frequentemente publicadas). Sabemos que assim ganhamos alguns visitantes e perdemos muitos outros — entre ganhos e perdas, é essa a nossa opção.
C. Para além desta situação (esclarecida), e muito para além do Cinema Notebook, creio que vale a pena acrescentar alguns elementos de reflexão a propósito da disponibilidade (ou não) dos autores de blogs para o "diálogo" — e com particular incidência nos críticos (de cinema, música, etc.).
Em primeiro lugar, e falando mais especificamente sobre cinema, importa dizer, sem qualquer equívoco, que a esmagadora maioria dos comentários da blogosfera que abordam a posição expressa por algum crítico são pueris. Porquê? Porque, incapazes de lidar com uma simples argumentação, se revoltam contra um todo que não existe, ou seja "a" crítica — de facto, existem muitos discursos críticos, muito diversos, contraditórios e até inconciliáveis, mas não existe esse rebanho que se exprime a uma só voz e, ainda por cima, sempre contra esse outro rebanho a que se dá o nome de "público" (obviamente, as clivagens entre espectadores são ainda maiores que entre críticos). Claro que há o reverso da medalha: o bloguista que acha que algum crítico é o "maior" apenas porque se sente próximo da "sua" visão — o resultado tem a vantagem de ser menos agressivo, mas a desgraça de pensamento é rigorosamente a mesma.
Depois, a esmagadora maioria desses mesmos comentários são difamatórios: "Fulano de tal é uma besta" (e tendo em conta o tom lamentável de alguns blogs, a descrição apenas peca por defeito). Porquê? Porque gosta (ou não gosta) do filme de que eu não gosto (ou gosto). Nenhuma alternativa. Nenhum pensamento. Nem sequer uma pequena dúvida sobre a dificuldade — subjectiva, social, simbólica, teórica e argumentativa — de definir aquilo a que, com total ligeireza e irresponsabilidade, se dá o nome de gosto.
Além do mais, convenhamos que chamar uma "besta" a alguém e julgar que isso lhe confere o inalienável direito de "exigir" uma resposta é uma patetice — apesar de tudo, a "besta" não é necessariamente estúpida e, à falta de melhor, ainda conserva algum amor próprio.
D. Bem sei que colocar as coisas desta maneira parece estar a fazer caricatura forçada — mas, infelizmente, não é. Basta circular alguns momentos pela blogosfera (cinematográfica ou não) para verificar que se assiste ao triunfo de uma absoluta impreparação para sustentar uma argumentação, prevalecendo o tom triunfante de quem nunca pensou — e, em boa verdade, nunca foi levado a pensar — no que significa estabelecer uma relação social.
E. É uma velha forma de ignorância essa de pensar que o crítico, seja de que área for, é aquele que espera "convencer" os outros — pior do que isso: seria aquele que espera que todos os outros se ponham a falar/pensar como ele.
Há mais de 30 anos que escrevo que o trabalho crítico nada tem a ver com isso — e devo reconhecer, humildemente, que com poucos efeitos práticos. Ser crítico de cinema (ou de qualquer outra área) é começar por reconhecer — e sentir — que o seu próprio discurso está preso de uma irredutibilidade que não é possível rasurar: tem a ver com a minha cabeça, o meu corpo, a minha história. Tal como o de qualquer espectador, penso eu — mas o certo é que há cada vez mais espectadores para quem ser espectador de cinema parece esgotar-se na obsessão de estar do lado de uma "razão" global que os torna muito felizes, mas que não os faz produzir uma única ideia consistente sobre o cinema e a sua especificidade.
F. Há lugares-comuns que traduzem esse comportamento e que também conheço há décadas (o que me leva a pensar que a minha geração apenas conseguiu transmitir o pior de si própria).
Um desses lugares-comuns, sempre desperto em épocas como aquela que atravessamos, é o da "caução pelos Oscars". Ou seja: "Os palermas dos críticos vão ver como os Oscars vão ser contra eles!" É patético, eu sei, mas como é que se responde a isto?... Lembrando que uma coisa é pensar pelas nossas cabeças, outra é esta visão "velocipédica" do cinema, a ver quem passa à frente na última pedalada? Além do mais, a Academia de Hollywood não sofre de pesadelos por causa dos "críticos" e tem coisas mais interessantes para fazer...
G. Outro lugar-comum, liminarmente insultuoso, é o que proclama: "Claro: esse fulano detesta cinema americano!" A blogosfera está cheia de criancices deste teor e, de facto, por vezes, apetece perguntar: alguém leu o que eu escrevi na semana passada?
E no mês passado?
E ao longo do último ano?
E ao longo dos últimos 35 anos, desde que comecei a escrever regularmente sobre filmes?
Os bloguistas que ainda não tinham nascido quando eu comecei a escrever têm andado a estudar a imprensa portuguesa, a edição de livros e os arquivos da Cinemateca das décadas de 70, 80 e 90?
Alguém, de simples boa fé, acredita que os milhares de filmes comentados em milhares de artigos, em muitos milhões de caracteres, pode ser reduzido a semelhante disparate descritivo?
H. Não é, entenda-se, uma questão pessoal, pela simples razão de que há muitas pessoas visadas por difamações do género. Por isso mesmo, a pergunta que se coloca é esta: em nome de quê se pode acolher, defender ou proteger esta miséria argumentativa e as mentiras que nela se promovem?
I. Não é um caso exclusivo do cinema — longe disso. A blogosfera está cada vez mais dominada e, em grande parte, degradada, por uma profunda deseducação: são muito poucos os que procuram o confronto de ideias; quase todos alimentam o conflito. Qualquer processo transformador deste estado de coisas terá que partir do interior — isto é, de quem faz e escreve os blogs.
J. Esta opção pelo conflito é, hoje em dia, o princípio ideológico mais promovido pela televisão quotidiana — da política ao futebol, não há nenhuma pedagogia no sentido de promover a dificuldade e a responsabilidade do confronto; há, isso sim, uma continuada exaltação da algazarra do conflito.
Sim, porque pensar é difícil. E quem realmente pensa, sabe também pensar que o limite do seu pensamento não é nenhuma "razão" definitiva, muito menos uma "razão-contra-os-outros" — pensar é reconhecer que nunca conheceremos por inteiro a diferença dos outros (nem a nossa, hélas!). Como diz Sollers, o pensamento, no seu excesso mais puro, é o amor.
Não tenhamos ilusões: neste contexto, os problemas relacionados com o cinema e a crítica são apenas uma gota de água num oceano de imensa degradação cultural, isto é, de crise radical dos valores individuais e colectivos.