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A generalização do debate de ideias através dos blogs é uma aquisição cuja importância (prática e simbólica) tende a mascarar aquela que é, não poucas vezes, a sua equívoca "democratização". Em boa verdade, acontece com frequência que a abertura ao debate se traduz num devastador triunfo da ignorância.
Isto porque a interacção quotidiana dos blogs — sobretudo aqueles cuja concepção se esgota na multiplicação de "ideias" de vocação mais ou menos insultuosa ou difamatória — tende a gerar uma espécie de efeito tribal, eminentemente esquemático e, no limite, repressivo.
Na prática, um texto de opinião pode gastar milhares e milhares de caracteres, remeter para outros textos mais ou menos complexos, citar referências mais ou menos extensas, sublinhar pedagogicamente a complexidade do seu objecto... pode fazer tudo isso e, em poucos minutos, ser "devorado" por uma avalancha de "opiniões" que rapidamente o catalogaram como coisa a "preto-e-branco" (mais exactamente: ou "preta" ou "branca").
Basta ver o exemplo muito português do trabalho de Manoel de Oliveira (e escusado será dizer que ninguém pretende classificar uma obra tão complexa e contrastada como consensual — muito longe disso). É evidente que há quem refira os seus filmes sem conhecer um único dos seus fotogramas, sem sequer ter a noção de que os sempre citados filmes "longos" são, de facto, raríssimos na sua trajectória (por mera curiosidade, lembremos que as mais recentes quinze longas-metragens de Oliveira têm todas duração inferior a qualquer filme de "Harry Potter").
O certo é que quem tenha alguma vez formulado algum juízo positivo sobre algum filme de Oliveira — e independentemente do que tenha escrito sobre qualquer um dos outros e até dos méritos (certamente discutíveis) da sua escrita —, pode atrair em qualquer momento essa vaga imensa, e imensamente destruidora, de ignorância militante que gosta de rotular os outros como se fossem ovelhas de um rebanho intelectual — a descrição pode parecer caricata mas, tendo em conta os métodos usados, não tem nada de incorrecto.
Por vezes, o carácter absurdamente anedótico de tal tipo de generalizações supera qualquer réstea de agonizante objectividade. Já me aconteceu (e não sou o único) expressar um ponto de vista reticente sobre uma grande produção de Hollywood e ser automaticamente julgado na praça pública como alguém que "odeia" o cinema americano...
Seja como for, a fulanização das questões faz-nos fugir ao essencial. As difamações pessoais são apenas um detalhe. O que é grave é que este "caldeirão-de-ideias-de-coisa-nenhuma" tende a fazer lei e a impor-se (ou, pelo menos, a tentar impor-se) como uma teia de verdades irrefutáveis. Não é fácil combater tal conjuntura porque, além do mais, a sua violência provém sempre de discursos que encenam o mundo como um painel de objectos que se "defendem" ou "atacam" (contra aqueles que, supostamente ou não, os "atacam" ou "defendem"...). A democracia de pensamento dos blogs confunde-se, por isso, muitas vezes, com a apoteose de uma ditadura virtual.