Estão a nascer novas imagens, produto de muitas sínteses técnicas e estéticas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Julho), com o o título 'Para além do olhar humano'.
Na cena de abertura do filme Procurado (Wanted), de Timur Bekmambetov, há uma imagem inesquecível. No topo de um arranha-céus, surge uma personagem que, na perseguição de outra, se lança contra o vidro de uma imensa janela (para a rua, para encontrar uma melhor posição de tiro… mas não me peçam justificações lógicas ou lineares). Ao embater no vidro, este estilhaça-se em centenas de fragmentos, num efeito hiper-realista ampliado pelo súbito ralenti da acção.
O senso comum, sempre falho de ideias, perguntará se semelhante acção é “possível”. É uma daquelas perguntas que nos relança para a idade das cavernas do pensamento sobre as imagens e que, em boa verdade, nos censura a simples fruição de qualquer coisa que possa escapar aos padrões “naturalistas” dos telejornais. A questão não está na “possibilidade” daquilo que nos é apresentado (mesmo sem esquecer as muitas e fascinantes frentes realistas do cinema contemporâneo). A questão decorre de um ancestral poder das próprias imagens, tão importante nos delírios de Bruegel o Velho, no século XVI, como nas paisagens assombradas nod nossos parentes surrealistas [Dali: O Sono, 1937]. Que poder é esse? O de confirmarem a experiência corrente do olhar humano, ao mesmo tempo desafiando esse olhar para aceitar representações que a sua consciência resiste a reconhecer co-mo “coisas” deste mundo.
Muito cinema contemporâneo (de algum modo simbolizado pela trilogia Matrix, dos irmãos Wachowski) nasce desta dicotomia entre o possível e o imaginado, o visível e o indescritível, o razoável e o inverosímil. Mais do que isso: os próprios padrões tradicionais de verosimilhança estão, todos os dias, a ser desafiados para além de fronteiras que, há pouco mais de uma década, a tecnologia não nos permitia supor.
Talvez que esta conjuntura tenha um preço difícil (ou que, pelo menos, importa discutir). Digamos que é o preço que sentimos quando observamos uma plateia de jovens indiferentes perante a convulsão emocional de clássicos como Esplendor na Relva (1961), de Elia Kazan [cartaz]. Dir-se-ia que as imagens virtuais do nosso presente podem gerar alguma indiferença face a um cinema intimista e sensual, literalmente à flor da pele. Em todo o caso, seria um erro lidar com tais fenómenos a partir de uma mera “culpa-bilização” geracional (dos filhos ou dos pais). O que, creio eu, importa reter é que o novo imaginário visual não exclui os corpos e as suas pulsões — apenas os desloca para novas para-gens, gerando outras imagens.
Daí o efeito quase onírico de imagens como esta do filme Procurado. Há nelas uma estranha, mas fascinante, reaproximação dos poderes primitivos de alguma pintura figurativa, como se a sua imponderável beleza nos levasse a pedir que serenassem, permitindo-nos contemplá-las numa silenciosa quietude (o ralenti, obviamente, é sensível a essa ânsia).
Curiosamente, este é mais um exemplo de um cinema nascido de muitos cruzamentos criativos. Claro que Procurado é uma típica produção de Verão made in Hollywood. Mas é também um filme que, além de duas estrelas americanas (Angelina Jolie e Morgan Freeman), integra um talentoso actor escocês (James McAvoy) e um realizador russo (Bekmambetov). A provar que, mais do que nunca, a globalização veio para ficar.
O senso comum, sempre falho de ideias, perguntará se semelhante acção é “possível”. É uma daquelas perguntas que nos relança para a idade das cavernas do pensamento sobre as imagens e que, em boa verdade, nos censura a simples fruição de qualquer coisa que possa escapar aos padrões “naturalistas” dos telejornais. A questão não está na “possibilidade” daquilo que nos é apresentado (mesmo sem esquecer as muitas e fascinantes frentes realistas do cinema contemporâneo). A questão decorre de um ancestral poder das próprias imagens, tão importante nos delírios de Bruegel o Velho, no século XVI, como nas paisagens assombradas nod nossos parentes surrealistas [Dali: O Sono, 1937]. Que poder é esse? O de confirmarem a experiência corrente do olhar humano, ao mesmo tempo desafiando esse olhar para aceitar representações que a sua consciência resiste a reconhecer co-mo “coisas” deste mundo.
Muito cinema contemporâneo (de algum modo simbolizado pela trilogia Matrix, dos irmãos Wachowski) nasce desta dicotomia entre o possível e o imaginado, o visível e o indescritível, o razoável e o inverosímil. Mais do que isso: os próprios padrões tradicionais de verosimilhança estão, todos os dias, a ser desafiados para além de fronteiras que, há pouco mais de uma década, a tecnologia não nos permitia supor.
Talvez que esta conjuntura tenha um preço difícil (ou que, pelo menos, importa discutir). Digamos que é o preço que sentimos quando observamos uma plateia de jovens indiferentes perante a convulsão emocional de clássicos como Esplendor na Relva (1961), de Elia Kazan [cartaz]. Dir-se-ia que as imagens virtuais do nosso presente podem gerar alguma indiferença face a um cinema intimista e sensual, literalmente à flor da pele. Em todo o caso, seria um erro lidar com tais fenómenos a partir de uma mera “culpa-bilização” geracional (dos filhos ou dos pais). O que, creio eu, importa reter é que o novo imaginário visual não exclui os corpos e as suas pulsões — apenas os desloca para novas para-gens, gerando outras imagens.
Daí o efeito quase onírico de imagens como esta do filme Procurado. Há nelas uma estranha, mas fascinante, reaproximação dos poderes primitivos de alguma pintura figurativa, como se a sua imponderável beleza nos levasse a pedir que serenassem, permitindo-nos contemplá-las numa silenciosa quietude (o ralenti, obviamente, é sensível a essa ânsia).
Curiosamente, este é mais um exemplo de um cinema nascido de muitos cruzamentos criativos. Claro que Procurado é uma típica produção de Verão made in Hollywood. Mas é também um filme que, além de duas estrelas americanas (Angelina Jolie e Morgan Freeman), integra um talentoso actor escocês (James McAvoy) e um realizador russo (Bekmambetov). A provar que, mais do que nunca, a globalização veio para ficar.