Os efeitos especiais estão longe de ser um facto recente na história técnica e narrativa do cinema. Muito do passado dos filmes existe através deles, por certo muito do futuro dependerá deles — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Julho), com o título 'Verdade e mentira dos efeitos especiais'.
A acreditar em algum jornalismo de raiz televisiva, existiria esse género cinematográfico que são os “filmes de efeitos especiais”. Na prática, sabemos que se referem aos blockbusters de Hollywood, centrados em super-heróis e extraterrestres. A memória histórica de tal discurso não consegue recuar muito para além das últimas promoções do mercado do DVD, pura e simplesmente ignorando que o conceito de efeito especial é tão velho como o próprio cinema. Basta olhar para Viagem à Lua, realizado por Georges Méliès há mais de um século (1902), para se compreender que a manipulação dos objectos e do seu registo fotográfico é, desde os tempos mais primitivos, um factor inerente ao desejo de cinema.
O problema, entenda-se, não está nos citados blockbusters, em si mesmo uma área de produção plena de contradições. Em termos meramente subjectivos, direi que, este ano, já tivemos exemplos extremados: primeiro, a imensa desilusão de Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal, de Steven Spielberg; depois, a maravilhosa energia criativa dos irmãos Wachowski, em Speed Racer. Nem se trata de negar que há importantes sectores da actual produção americana (e alguma europeia, nomeadamente francesa) que, para o melhor ou para o pior, dependem da integração de novos e sofisticadíssimos conhecimentos tecnológicos.
Importa, sobretudo, deslocar o debate (se é que ele existe ou pode existir...), talvez começando por lembrar que algumas modernas aplicações dos efeitos especiais estão, realmente, ligadas à reconversão das potencialidades clássicas das imagens cinematográficas. Mais ainda: nada disso pode ser dissociado da discussão do próprio estatuto de verdade (ou mentira) que atribuímos a tais imagens.
E se é verdade que a moderna idade dos efeitos especiais pode ser definida a partir da obra-prima de Stanley Kubrick, 2001: Odisseia no Espaço (1968), não é menos verdade que a história, na sua imensa pluralidade, nos ensina que há filmes que aplicam importantes efeitos especiais sem terem nada (mas mesmo nada) a ver com o conceito de blockbuster (nem sequer com a ficção científica). Exemplos? Apenas três, mas muito variados: Zelig (1983), de Woody Allen, com a paródica inserção do protagonista em imagens de actualidades das décadas de 1920/30; Irmãos Inseparáveis (1988), de David Cronenberg, com muitas imagens em que Jeremy Irons contracena com... Jeremy Irons; enfim, o mais recente A Inglesa e o Duque (2000), de Eric Rohmer, com a Revolução Francesa encenada em cenários virtuais.
Vivemos, por isso, um momento de fascinante cruzamento de novas tecnologias com a emergência de novas matrizes narrativas. O já citado Speed Racer é um excelente exemplo, tratando o ecrã, já não como uma janela sobre o mundo, mas como uma espécie de painel (ou, se quiserem, uma tela) disponível para novos conceitos de figuração, composição e profundidade. Aliás, o mais recente filme com Angelina Jolie, Wanted/Procurado, de Timur Bekmanbetov (estreia na quinta-feira, dia 10), é também um esclarecedor sintoma de tal tendência. Pressentimos o próprio conceito tradicional de ecrã a ser activamente posto em causa. Afinal de contas, hoje em dia, dos centros comerciais aos telemóveis, onde é que não há ecrãs?