domingo, fevereiro 03, 2008

A mulher e o símbolo

Foto de Steven Meisel - campanha Versace, 1995

Há poucos meses, Lucy O'Brien publicava uma nova biografia de Madonna, Like an Icon, um caso exemplar de investigação jornalística e avaliação histórica, musical e simbólica. Agora, acaba de sair a respectiva edição portuguesa — o texto que se segue assinala esse lançamento, tendo sido publicado no Diário de Notícias (2 Fev.), com o título 'Um livro para redescobrir a rainha da música pop'.

>>> Quem é que, no começo dos anos 70, ouvia no carro do namorado a cassete do álbum de David Bowie, Ziggy Stardust and the Spiders from Mars? Quem é que coleccionava apaixonadamente os 45 rotações da Motown? Quem é que se revia no canto e na pose da vocalista dos Blondie, Debbie Harry? A resposta é sempre a mesma: Madonna foi esse vulcão pop que surgiu nos primeiros anos da década de 80, por assim dizer sugando as mais diversas referências e influências, umas eminentemente musicais, outras ligadas à arte da pose e da imagem.
O livro de Lucy O’Brien sobre Madonna chama-se Como um Ícone (no original Like na Icon, lançado no Verão de 2007 pela Bantam Press). E faz sentido que assim seja. De facto, não estamos perante uma vulgar biografia de uma personagem famosa. Mesmo detalhes como os que atrás se referem não resultam de uma abordagem mais ou menos pitoresca, antes surgem integrados num trabalho enraizado numa sólida estratégia jornalística: trata-se de tentar perceber como é que uma mulher americana nascida em 1958, numa típica família católica de Bay City (estado do Michigan), se transforma, primeiro num singularíssimo fenómeno da música popular, depois numa entidade de fama e impacto realmente global. Como um ícone, de facto. Ou, para falarmos em termos mitológicos: como uma Rainha (do mundo da pop).
Como se compreenderá, Como um Ícone não é um livro de espectaculares “descobertas” ou revelações “escandalosas”. Do impacto inicial de canções como Holiday ou Burning Up (1983) até à sofisticação dos espectáculos da “Drowned World Tour” (2001), passando pelas polémicas em torno do livro Sex (1992), Lucy O’Brien vai percorrendo a evolução temática e artística de Madonna, não à procura do efeito gratuito, antes iluminando as ligações entre a vida privada e a expressão pública, a obra pessoal e as transformações da cultura popular nas últimas duas décadas.
Daí duas significativas consequências: por um lado, somos levados a compreender que, para além dos efeitos de moda ou das estratégias de marketing, a obra de Madonna possui uma dimensão eminentemente pessoal, por vezes confessional (releiam-se os poemas do álbum American Life, de 2003); por outro lado, a sua trajectória e, em particular, o seu intransigente individualismo são inseparáveis das transformações do papel social das mulheres nas últimas duas décadas.
Aliás, é sintomático que a própria Lucy O’Brien (nascida em Londres, em 1962) reconheça que a força simbólica desse papel feminino tenha sido fundamental na sua própria relação com o universo de Madonna, primeiro como fã das músicas da década de 80, mais tarde como investigadora. Daí que Como um Ícone seja uma dupla viagem de descoberta: de Madonna como entertainer e dos efeitos sociais e simbólicos do seu trabalho.