Foto: Denise Gürnstein / DG
Esta é a segunda parte da transcrição de uma conversa com Anne Sofie von Otter, depois editada e publicada no Diário de Notícias (3 de Setembro), tendo como ponto de partida o álbum Terezín/Theresienstadt, com peças de autores judeus assassinados pelos nazis. No final, proveniente do mesmo dossier, inclui-se um texto sobre o disco.
[...] Será que corremos o risco de esquecer todas essas memórias?
Infelizmente, tem havido e há situações terríveis na Jugoslávia, na Tchechénia, em África. É preciso não esquecer. E a Segunda Guerra Mundial é esclarecedora sobre o modo como os seres humanos se podem comportar como monstros. Por exemplo, sei que quando os sobreviventes da Segunda Guerra Mundial vão falar às escolas produzem sempre uma impressão fortíssima junto dos mais novos. Claro que o efeito que eu posso provocar não é o mesmo, mas a música (e as palavras, claro) possuem uma mensagem que pode levar as pessoas a pensar um pouco se tiverem disponibilidade para isso.
Na Suécia, precisamente, que espécie de mensagem a sua geração recebeu dos sobreviventes da Segunda Guerra Mundial?
Antes do mais, têm histórias incríveis para contar, história de sobrevivência de quem viveu em fuga, longe das famílias. E que tenham conseguido sobreviver é um milagre que testemunha a capacidade humana de continuar a viver, mesmo nas situações mais extremas. Durante e depois da guerra, muitos judeus vieram viver para a Suécia e deram o seu testemunho através de livros e palestras. O meu pai conheceu um oficial das SS, Kurt Gerstein, um dos engenheiros químicos dos nazis que quis dar a conhecer o desenvolvimento do Holocausto. Gerstein encontrou o meu pai (que era diplomata) num comboio, em 1942, e pediu-lhe que informasse o governo sueco do que estava a acontecer. Infelizmente, não quiseram agir... Provavelmente, já saberiam das câmaras de gás, mas limitaram-se a escutar, tomaram notas agradeceram e não fizeram nada. Até ao fim da vida, isso foi também uma tortura para o meu pai, que sempre lamentou o facto de não ter conseguido fazer nada para acelerar o processo de conhecimento do Holocausto. O meu pai não queria falar sobre o assunto, mas, claro, eu cresci tendo consciência de tudo isso.
Depois da guerra, que aconteceu à música de Theresienstadt? Qual é a história posterior destas canções?
Há canções que já existiam antes da guerra. Algumas delas, em particular os temas de cabaret ou as canções de embalar, continuaram a ouvir-se. A maioria foram registadas, não em papel, mas apenas através da memória dos sobreviventes que, depois da guerra, as puderam dar a ouvir. A música de Theresienstadt foi preservada pela Terezín Chamber Music Foundation, havendo mesmo várias gravações. Em todo o caso, este disco é o primeiro a ser lançado por uma editora com a dimensão da Deutsche Grammophon. [continua]
Música para os tempos cruéis
Claro que não é possível escutar as músicas e os poemas deste álbum sem remetermos constantemente a nossa escuta para o espaço (e o tempo) do campo de Theresienstadt: o que seria e, sobretudo, como seria viver sob o jugo nazi? Mais do que isso: o que seria essa existência de repressão e sofrimento em que, contra toda a lógica, a música ainda foi possível?
Daí também que seja vital não reduzir este projecto ao mais piedoso lugar-comum da “homenagem” à cultura judaica: o que aqui se pode ouvir são peças que resistiram, não apenas à crueldade da história, mas também às transformações da própria paisagem musical. Como escreveu o compositor austríaco Viktor Ullmann (1898-1944), “não nos sentámos nas margens dos rios da Babilónia e chorámos; antes manifestámos um desejo de criar arte que exprimia por inteiro a nossa vontade de viver.”
Há temas que se referem directamente à vida em Theresienstadt, a começar pelo que abre o disco, Ich Wander Durch Theresienstadt (“Andei por Theresienstadt”), belíssima e dolorosa deambulação composta por Ilse Weber (1903-1944). Outros, como a Vsechno Jde! (“Marcha de Terezín”), de Karel Svenik (1907-1945), onde além do piano de Bengt Forsberg se ouve o acordeão de Bebe Risenfors, possuem uma energia propriamente trágica, rasgada pela mais desconcertante ironia: “Desafiando os tempos cruéis / Temos humor nos nossos corações”.
Há ainda, por exemplo, canções de embalar (como a luminosa Wiegala, de Ilse Weber) e temas compostos sobre poemas de Rimbaud, por Hans Krása (1899-1944), na voz do barítono Christian Gerhaher, tudo imbuído de uma depuração e uma urgência que o passar do tempo só pode intensificar. A fechar o álbum, o violinista Daniel Hope interpreta uma sonata de Erwin Schulhoff (1894-1942), compositor de génio, aluno de Debussy, que deixou uma obra aberta a contaminações que vêm tanto do dadaísmo como do jazz. Schulhoff foi um dos nomes incluídos pelos nazis na lista da arte “degenerada”.
[...] Será que corremos o risco de esquecer todas essas memórias?
Infelizmente, tem havido e há situações terríveis na Jugoslávia, na Tchechénia, em África. É preciso não esquecer. E a Segunda Guerra Mundial é esclarecedora sobre o modo como os seres humanos se podem comportar como monstros. Por exemplo, sei que quando os sobreviventes da Segunda Guerra Mundial vão falar às escolas produzem sempre uma impressão fortíssima junto dos mais novos. Claro que o efeito que eu posso provocar não é o mesmo, mas a música (e as palavras, claro) possuem uma mensagem que pode levar as pessoas a pensar um pouco se tiverem disponibilidade para isso.
Na Suécia, precisamente, que espécie de mensagem a sua geração recebeu dos sobreviventes da Segunda Guerra Mundial?
Antes do mais, têm histórias incríveis para contar, história de sobrevivência de quem viveu em fuga, longe das famílias. E que tenham conseguido sobreviver é um milagre que testemunha a capacidade humana de continuar a viver, mesmo nas situações mais extremas. Durante e depois da guerra, muitos judeus vieram viver para a Suécia e deram o seu testemunho através de livros e palestras. O meu pai conheceu um oficial das SS, Kurt Gerstein, um dos engenheiros químicos dos nazis que quis dar a conhecer o desenvolvimento do Holocausto. Gerstein encontrou o meu pai (que era diplomata) num comboio, em 1942, e pediu-lhe que informasse o governo sueco do que estava a acontecer. Infelizmente, não quiseram agir... Provavelmente, já saberiam das câmaras de gás, mas limitaram-se a escutar, tomaram notas agradeceram e não fizeram nada. Até ao fim da vida, isso foi também uma tortura para o meu pai, que sempre lamentou o facto de não ter conseguido fazer nada para acelerar o processo de conhecimento do Holocausto. O meu pai não queria falar sobre o assunto, mas, claro, eu cresci tendo consciência de tudo isso.
Depois da guerra, que aconteceu à música de Theresienstadt? Qual é a história posterior destas canções?
Há canções que já existiam antes da guerra. Algumas delas, em particular os temas de cabaret ou as canções de embalar, continuaram a ouvir-se. A maioria foram registadas, não em papel, mas apenas através da memória dos sobreviventes que, depois da guerra, as puderam dar a ouvir. A música de Theresienstadt foi preservada pela Terezín Chamber Music Foundation, havendo mesmo várias gravações. Em todo o caso, este disco é o primeiro a ser lançado por uma editora com a dimensão da Deutsche Grammophon. [continua]
Música para os tempos cruéis
Claro que não é possível escutar as músicas e os poemas deste álbum sem remetermos constantemente a nossa escuta para o espaço (e o tempo) do campo de Theresienstadt: o que seria e, sobretudo, como seria viver sob o jugo nazi? Mais do que isso: o que seria essa existência de repressão e sofrimento em que, contra toda a lógica, a música ainda foi possível?
Daí também que seja vital não reduzir este projecto ao mais piedoso lugar-comum da “homenagem” à cultura judaica: o que aqui se pode ouvir são peças que resistiram, não apenas à crueldade da história, mas também às transformações da própria paisagem musical. Como escreveu o compositor austríaco Viktor Ullmann (1898-1944), “não nos sentámos nas margens dos rios da Babilónia e chorámos; antes manifestámos um desejo de criar arte que exprimia por inteiro a nossa vontade de viver.”
Há temas que se referem directamente à vida em Theresienstadt, a começar pelo que abre o disco, Ich Wander Durch Theresienstadt (“Andei por Theresienstadt”), belíssima e dolorosa deambulação composta por Ilse Weber (1903-1944). Outros, como a Vsechno Jde! (“Marcha de Terezín”), de Karel Svenik (1907-1945), onde além do piano de Bengt Forsberg se ouve o acordeão de Bebe Risenfors, possuem uma energia propriamente trágica, rasgada pela mais desconcertante ironia: “Desafiando os tempos cruéis / Temos humor nos nossos corações”.
Há ainda, por exemplo, canções de embalar (como a luminosa Wiegala, de Ilse Weber) e temas compostos sobre poemas de Rimbaud, por Hans Krása (1899-1944), na voz do barítono Christian Gerhaher, tudo imbuído de uma depuração e uma urgência que o passar do tempo só pode intensificar. A fechar o álbum, o violinista Daniel Hope interpreta uma sonata de Erwin Schulhoff (1894-1942), compositor de génio, aluno de Debussy, que deixou uma obra aberta a contaminações que vêm tanto do dadaísmo como do jazz. Schulhoff foi um dos nomes incluídos pelos nazis na lista da arte “degenerada”.