domingo, setembro 09, 2007

Terezín por Anne Sofie von Otter (1/3)

Foto: Mats Bäcker / DG

A mezzo-soprano sueca Anne Sofie von Otter acaba de lançar um dos grandes álbuns de 2007: Terezín/Theresienstadt (Deutsche Grammophon) evoca a música dos artistas judeus enviados pelos nazis para o campo de Theresienstadt, na Checoslováquia. Esta é a primeira parte da transcrição de uma conversa com von Otter, depois editada e publicada no Diário de Notícias (3 de Setembro). No final, proveniente do mesmo dossier, inclui-se um texto evocativo da história de Theresienstadt.

Quando esteve em Lisboa, na abertura da temporada 2006/2007 da Fundação Gulbenkian, Bengt Forsberg interpretou ao piano uma peça de Erwin Schulhoff que, por sua vez, é um dos compositores que surge no seu novo disco. Quer isto dizer que, na altura, já estava envolvida com os temas que, agora, surgem em Theresienstadt?
Sim, embora praticamente nunca os tivesse cantado em concerto. Tudo começou no ano 2000, em Estocolomo, quando o Forum Internacional para o Holocausto me convidou, assumindo que eu iria interpretar canções de compositores judeus como Gustav Mahler ou Eric Korngold. O certo é que Yvonne Rock, uma das pessoas envolvidas no Forum, me chamou a atenção para as canções do campo de concentração de Theresienstadt. Conhecia o nome Theresienstadt mas, em boa verdade, não sabia nada sobre a sua história: foi uma verdadeira revelação. No Forum, acabei por apresentar canções de Viktor Ullmann e Ilse Weber. E fiquei tão comovida pelo que tinha descoberto que quis conhecer mais. Rapidamente propus o projecto de gravação à Deutsche Grammophon.
Que tipo de preparação foi necessária para gravar canções tão especiais como estas?
Em primeiro lugar, li imenso sobre o assunto. Muitas vezes, falta-me o tempo ou tenho preguiça para ler. Mas desta vez empenhei-me em ler livros, artigos e procurei no Google. Um livro particularmente importante foi Sem Destino, do húngaro Imre Kertesz, sobre a sua experiência pessoal em Auschwitz e Buchenwald. Acabei mesmo por ir a Theresienstadt, com Bengt Forsberg, onde fomos recebidos por uma sobrevivente que nos mostrou o local e nos falou da sua história.
É uma memória que importa preservar?
Sem dúvida. E não é fácil prepararmo-nos mentalmente. Apesar das suas capacidades intelectuais, o ser humano pode fazer as coisas mais terríveis. E por isso é preciso nunca esquecer o que aconteceu. Sempre, sempre, sempre... Ao mesmo tempo (e é um assunto sobre o qual tenho reflectido muito com o meu marido), o maravilhoso de tudo isto é a energia que podemos receber da literatura, da música, da arte. No caso dos prisioneiros dos campos, a música pôde trazer alguma luz para o seu terrível quotidiano.
As canções são musicalmente lindíssimas, mas os seus poemas são também profundamente comoventes.
Muito. Mesmo uma simples canção como a melodia de opereta (que é, aliás, uma composição mais antiga) de Adolf Strauss, Ich Werd Dich Wiedershn (“Sei que te vou ver outra vez”). Essa canção comoveu-me até às lágrimas, o seu significado, para mais naquele contexto, é tão especial... [continua]

Memórias de Terezín

Os compositores que passaram pelo campo de Theresienstadt (Terezín, em checo) faziam parte de uma “elite” escolhida pelos nazis para simbolizar a “normalização” da situação dos judeus. Oficialmente, Theresienstadt era descrito como um lugar de retiro para os mais velhos. Em Junho de 1944, o campo foi mesmo objecto de algumas melhorias superficiais (com escolas e restaurantes fictícios), de modo a enganar um comité de investigação da Cruz Vermelha Internacional, ao mesmo tempo permitindo a produção de imagens “limpas” para a propaganda cinematográfica de Hitler. Inaugurado a 24 de Novembro de 1941, numa zona da Checoslováquia ocupada, cerca de 60 quilómetros a noroeste de Praga, Theresienstadt foi concebido pelos nazis como um “modelo”. No portão principal figurava, aliás, o lema também colocado na entrada de Auschwitz: “Arbeit Macht Frei” (“O trabalho liberta”).
Apesar das precárias condições de existência, desenvolveram-se em Theresienstadt diversas formas de produção artística que, hoje em dia, constituem um inestimável testemunho histórico e de resistência. Em 1942, sob a direcção de Petr Ginz, alguns prisioneiros conseguiram mesmo produzir uma “revista” que, além de informação sobre os campos, continha textos de humor, poesia e até sugestões de jardinagem. Ginz seria enviado para Auschwitz, onde foi assassinado em 1944.
Em 1942, a elevadíssima taxa de mortalidade levou os nazis a construir um crematório capaz de queimar 200 cadáveres por dia. As deportações efectuaram-se, regularmente, até Outubro de 1944. Ao todo passaram por Theresienstadt mais de 140 mil judeus. Perto de 90 mil foram deportados e mortos, na sua maioria em Auschwitz. 33 mil morreram no próprio campo, tendo sobrevivido cerca de 19 mil. O campo foi libertado pelo exército soviético, a 8 de Maio de 1945. A história de Theresienstadt está amplamente documentada, desde o Memorial que existe no local onde funcionou o campo até diversos sites da Internet, incluindo o arquivo organizado por Steven Spielberg para o Holocaust Memorial Museum. Um dos livros mais recentes sobre o campo é Theresienstadt: Hitler’s Gift to the Jews, de Norbert Troller (publicado em inglês pela University of North Carolina Press). A preservação e divulgação da música de Theresienstadt está a cargo da Terezín Chamber Music Foundation, com sede em Boston.