sábado, março 10, 2007

Soderbergh na Alemanha (1/2)

O Bom Alemão, de Steven Soderbergh, com Cate Blanchett [na foto] e George Clooney, tem sido, aqui, objecto de algumas referências. O filme, finalmente, estreou e vale a pena sublinhar que raras vezes um objecto se coloca, assim, no centro irradiante da modernidade — estamos perante um exercício de memória histórica que, em última instância, desmonta os próprios mecanismos de representação dessa mesma história. Esta é a primeira parte de um texto publicado na revista "6ª" (Diário de Notícias), de 9 de Março, com o título 'Labirinto de solidões':
>>> Assim que começa o genérico de abertura de O Bom Alemão, o espectador não poderá deixar de sentir um duplo e paradoxal impulso: por um lado, as imagens de arquivo, a preto e branco, lançam a acção num contexto histórico muito preciso, ou seja, a cidade de Berlim, em grande parte destruída, nos meses finais da Segunda Guerra Mundial (pouco tempo antes do lançamento de uma bomba atómica sobre Hiroshima, a 6 de Agosto de 1945); por outro lado, o tipo de letras do próprio genérico e, depois, a ficção (que continua a preto e branco) projectam o filme numa memória mais ou menos nostálgica do melodrama de guerra, tal como foi praticado em Hollywood, especialmente durante a década de 40. Daí o segundo paradoxo: O Bom Alemão corre o risco de ser recebido como um mero exercício de revivalismo decorativo quando, em boa verdade, estamos perante uma subtil reavaliação de leis e códigos daquele tipo de melodrama.
Grande parte das resistências que O Bom Alemão encontrou nos EUA explicam-se, provavelmente, por esse equívoco: Steven Soderbergh não quis fazer uma “cópia” das aventuras românticas de Hollywood — a começar, como é óbvio, por Casablanca (1942) —, mesmo se é verdade que todo o seu trabalho aposta numa espécie de sobreposição perversa com o look dessas mesmas aventuras. Nesse aspecto, a démarche de Soderbergh é tanto mais intencional e controlada quanto, à semelhança do que já aconteceu em outros dos seus filmes (Bubble, por exemplo, entre nós apenas lançado em DVD), ele próprio acumula as funções de director de fotografia, assinando com o pseudónimo de Peter Andrews. Trata-se, aliás, de um trabalho altamente sofisticado, não só pela iluminação que implica, mas também porque as imagens resultam de uma filmagem a cores (veja-se, no genérico final, a referência ao laboratório da Technicolor) e de uma complexa pós-produção digital para passagem a preto e branco.