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Francisco Melo à descoberta da cidade |
Como é que o cinema português encara o nosso quotidiano e, em particular, as vidas de uma juventude algo à deriva? O novo filme de João Rosas, A Vida Luminosa, procura respostas, retomando temas e personagens das suas curtas-metragens — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 junho).
Nas décadas de 1960/70, os autores do Cinema Novo português empenharam-se na abordagem de temas e personagens do nosso país. Em todo o caso, a sua herança foi-se fragilizando: a passagem dos anos instalou mesmo a sensação de que a produção portuguesa, sobretudo quando comparada com as de outros países europeus, é deficitária na relação com o quotidiano das nossas vidas — convenhamos que tal observação tem algum fundamento. Nascido em Lisboa, em 1981, João Rosas é um dos realizadores que tem tentado contrariar essa tendência, atitude agora bem patente na sua primeira longa-metragem de ficção, A Vida Luminosa.
Aliás, importa lembrar que este é um filme que surge como uma “conclusão” de algumas curtas-metragens — Entrecampos (2013), Maria do Mar (2015) e Catavento (2020) — também centradas nas relações de grupos de personagens jovens e, mais do que isso, no trabalho de uma pequena “tribo” de actores. Há mesmo uma figura que se destaca, Nicolau, sempre interpretado por Francisco Melo, agora no centro de A Vida Luminosa.
A existência de Nicolau, lisboeta de 24 anos de idade, evolui através de um conjunto de elementos que, por si só, definem um quadro sociológico e uma deriva afectiva. A vida na casa dos pais envolve um misto de proteção e solidão, já que Nicolau arrasta o peso de uma vocação musical sempre adiada, a par da tristeza de uma relação amorosa que se desvaneceu...
Na sinopse oficial do filme, há uma frase que, de modo simples e sugestivo, resume a sua condição: “Nicolau sente-se incapaz de andar para a frente e inventar uma vida que seja sua.”
O comportamento de Nicolau acaba por contrariar essa possibilidade de “andar para a frente”. O filme assume-se mesmo como a crónica de um tempo luminoso (o título tem tanto de descrição objectiva como de mágoa utópica) que o protagonista habita num permanente ziguezague de actos dispersos e desejos vagos. Quando o vemos a deambular na sua bicicleta ou a aceitar, relutante, um beijo de uma noite sem destino, tudo acontece como se a tal “invenção” da sua vida se apresentasse como uma tarefa imensa que ele próprio não sabe, ou não consegue, contaminar com algum realismo.
O que, enfim, nos ajuda a compreender a aposta formal do próprio filme face à errância desta juventude. Dir-se-ia que a tal relação com o quotidiano se enraíza numa ambivalência capaz de definir, porventura consolidar, um programa estético muito próprio: a instabilidade (de gestos, emoções e ideias) de Nicolau é resgatada pela exigência de um realismo que não desdenhe a possibilidade de uma poesia contaminada por alguma ironia. Como é óbvio, a vida de Nicolau pode ser continuada através de mais filmes.