domingo, fevereiro 09, 2020

Harley Quinn: a rotina de Hollywood

Hollywood recupera mais uma personagem do mundo da BD: Harley Quinn, ex-namorada do Joker. Margot Robbie investiu muito no projecto, na dupla qualidade de actriz e produtora, mas os resultados são de uma pobreza rotineira — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Fevereiro), com o título 'As aventuras (pouco) fantásticas de Margot Robbie'.

Nos últimos anos, no sistema de produção de Hollywood, os movimentos pela igualdade e representatividade de todas as diferenças (raça, género, etc.) têm desempenhado um importante papel, desde logo no plano profissional e financeiro, mas também na dinâmica ideológica e simbólica da própria indústria. Mesmo sem secundarizar tais avanços, está por esclarecer uma grosseira contradição. A saber: que levará os criadores (mulheres e homens) a pensar que a imitação, em tom feminino, dos maus filmes com heróis masculinos é uma maneira interessante e inteligente de defender o lugar das mulheres na própria indústria?
Birds of Prey (à letra: “aves de rapina”), realizado por Cathy Yan a partir da banda desenhada homónima da DC Comics, aí está como exemplo sintomático de tal contradição, nesse aspecto reforçando o equívoco sobre o qual se construía Oceans’8 (2018), dirigido por Gary Ross, medíocre versão feminina (?) da série iniciada com Ocean’s 11 - Façam as Vossas Apostas (2001), de Steven Soderbergh.
A personagem central, de seu nome Harley Quinn, apresenta-se como um curioso cruzamento de afirmação identitária, paródia burlesca e gosto de espectáculo. Isso mesmo está sublinhado no subtítulo, “A Fantabulástica Emancipação de uma Harley Quinn”, aliás traduzindo tão literalmente quanto possível o original “The Fantabulous Emancipation of One Harley Quinn” (ainda assim, a opção mais correcta teria sido “fantabulosa”, combinando os adjectivos “fantástica” e “fabulosa”). Sem esquecer, claro, que o nome Harley Quinn envolve uma brincadeira fonética com Harlequin (Arlequim), personagem emblemática da tradição, de raiz italiana, da Commedia dell’arte.
Que o projecto foi assumido como um especial desafio conceptual e artístico, prova-o o facto de o nome de Margot Robbie, intérprete de Harley Quinn, surgir também creditado como produtora do filme. O certo é que nem mesmo a versatilidade de tão talentosa actriz (recordemos apenas os exemplos recentes de Era uma Vez em Hollywood e Bombshell) basta para compensar as rotinas de produção que acabam por tomar conta do filme.
Há, de facto, qualquer coisa de demissão artística no modo como filmes como Birds of Prey se vão confundindo com a ilustração de um “caderno de encargos” que, cena sim, cena não, obriga a monótonas coreografias (combates físicos, perseguições de automóveis…) que só evoluíram num aspecto: o tratamento dos sons é cada vez mais esquemático e agressivo, colocando o espectador na posição de quem já não está a assistir a um espectáculo, mas apenas a defender-se dos disparos sonoros a que o sujeitam.
Ficam duas curiosidades. Em primeiro lugar, o facto de Harley Quinn ser a ex-namorada do Joker, personagem também pertencente a este universo da BD — seja como for, não há qualquer cruzamento, nem mesmo meramente factual, com o filme protagonizado por Joaquin Phoenix, até porque a pré-produção de Birds of Prey começou ainda antes da rodagem de Joker. Depois, o argumento tenta recuperar um dispositivo narrativo — a sistemática voz off da heroína — que pode fazer lembrar a tradição do filme “noir” das décadas de 30/40… Pode, de facto, mas em Hollywood tudo era bem diferente.

sábado, fevereiro 08, 2020

A IMAGEM: Harley Weir, 2020

HARLEY WEIR
Billie Eilish
Vogue [Março, 2020]

Oscars: o passado e o presente
— SOUND + VISION Magazine [ hoje ]


Na véspera da 92ª cerimónia das estatuetas douradas de Hollywood, comentamos factos e memórias dos mais célebres prémios de cinema — dos consagrados aos que foram esquecidos.

* FNAC, Chiado — hoje, 8 Fevereiro (18h30).

Kirk Douglas (1916 - 2020)

Desvaneceu-se um dos derradeiros elos com a idade de ouro de Hollywood: Kirk Douglas faleceu no dia 5 de Fevereiro, em Beverly Hills — contava 103 anos.
Da austeridade das origens da sua família judaica, vinda da Rússia, ao estatuto de star, na dupla condição de actor e produtor, a trajectória de Kirk Douglas — de seu nome verdadeiro: Issur Danielovitch — ilustra a dinâmica de trabalho, e também a vocação utópica, da dimensão mais nobre de Hollywood. Eis cinco títulos para não esquecermos a sua frondosa trajectória artística.

>>> OUT OF THE PAST / O Arrependido (1947) — a máxima sofisticação da série B, com chancela do estúdio RKO; Robert Mitchum e Jane Greer lideram o elenco, pertencendo a realização a um mestre deste domínio: Jacques Tourneur.


>>> THE BAD AND THE BEAUTIFUL / Cativos do Mal (1952) — retrato intimista e épico dos bastidores de Hollywood, a partir da personagem de um produtor/ditador/sedutor, interpretado por Douglas — realização de Vincente Minnelli.


>>> LUST FOR LIFE / A Vida Apaixonada de Van Gogh (1956) — de novo sob a direcção de Minnelli, este é um retrato "contaminado" pelas cores e volumes da pintura, reinventando a própria noção de "biografia": um prodígio de sensualidade formal.


>>> STRANGERS WHEN WE MEET / Um Estranho na Minha Vida (1960) — sob a direcção de Richard Quine, contracenando com Kim Novak, este é um dos grandes (e muito esquecidos) melodramas de viragem dos anos 50/60, centrando-se nas convulsões de um adultério.


>>> THERE WAS A CROOKED MAN / O Réptil (1970) — um dos grandes "westerns" terminais, assinado por Joseph L. Mankiewicz; com um elenco exemplarmente clássico que inclui, entre outros, Henry Fonda, Warren Oates e Burgess Meredith.


Kirk Douglas foi nomeado três vezes para o Oscar de melhor actor — com Champion/O Grande Ídolo (1949), de Mark Robson, Cativos do Mal e A Vida Apaixonada de Van Gogh; nunca ganhou, vindo a receber, em 1996, uma distinção honorária da Academia de Hollywood. Publicou diversos livros de características auto-biográficas, com destaque para The Ragman's Son (1988), uma evocação das suas raízes familiares.

>>> Obituário em The Hollywood Reporter.
>>> Artigos de Kirk Douglas no HuffPost.

quarta-feira, fevereiro 05, 2020

Como Trump pode ganhar as eleições

I. Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, pode muito bem ter entregue a Donald Trump a vitória antecipada nas eleições presidenciais de 3 de Novembro em que ele se vai recandidatar (contra um democrata ainda por escolher). Ao rasgar a sua cópia do texto do discurso 'State of the Union', que Trump acabara de proferir [na base deste post, video e comentários: CNN], Pelosi cedeu à perversa sedução do espaço tele-virtual dos nossos dias. Como? Protagonizando um episódio efémero que, mesmo entendido a partir da mais humana das emoções — uma genuína e legítima revolta contra a demagogia e as mentiras de Trump —, será infinitamente reproduzido como acontecimento deslocado e, em última instância, ofensivo. Em última instância, além da sua inadequada postura institucional, Pelosi foi infantilmente impulsiva e dramaticamente ingénua.

II. Não acontecerá o mesmo com o gesto que Trump e Pelosi protagonizaram imediatamente antes do discurso, com ele a não corresponder à mão estendida com que ela o cumprimentava [video: CBSN].


Porquê? Sem dúvida porque, neste caso, a condição feminina de Pelosi se presta a uma lamentável ampliação mediática. E não deixa de ser triste que os/as militantes de todos os movimentos de defesa dos direitos femininos se mostrem incapazes de lidar com tudo isto expondo, como seria politicamente fundamental, o erro de Pelosi, sem esquecer, como é óbvio, o carácter sistemático da ignomínia de Trump.

III. Forçando-nos a viver a política como uma perversa derivação da reality TV, Trump vai coleccionando trunfos que lhe facilitam o caminho para um eventual segundo mandato. Seria útil que os seus opositores enunciassem a necessidade, para não dizer a urgência, de regressarmos a formas de confronto político que não sejam meras derivações das linguagens aceleradas e fragmentadas que estruturam o espaço definido pela proliferação de todos os nossos ecrãs. O certo é que, nos EUA como na Europa, não se vislumbra uma única figura da cena política que, sem maniqueísmos nem demonizações, se mostre disponível para pensar o poder normativo da televisão.

A ideologia do VAR

"Isto não é uma imagem justa, é apenas uma imagem"
— ou a pedagogia do olhar no filme Os Ventos de Este (1970)
A generalização do “video-árbitro” é um fenómeno cujo significado e efeitos transcendem o futebol. Na prática, passámos a aceitar que a complexidade do acto de olhar seja gerida por valores tecnológicos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Fevereiro).

Há poucas semanas, no final do jogo Southampton-Tottenham (1-0), José Mourinho fez algumas metódicas observações sobre o VAR que, a meu ver, não tiveram a ressonância que mereciam. Comentando a sua lógica (e não apenas naquele jogo), sublinhou o facto de o respectivo labor estar a desqualificar a acção do árbitro em campo. Sugeriu mesmo que a sua designação deveria excluir a palavra “assistente”, mudando de “video assistant referee” para “video referee” — isto é, “video-árbitro”.
Ironicamente, essa mesma designação, “video-árbitro”, é aquela que, desde o início da introdução da tecnologia do VAR, está consagrada em Portugal. Em todo o caso, não é minha intenção lidar com o assunto em termos irónicos. Porquê? Porque não me reconheço nos infinitos conflitos “clubísticos” que o VAR instalou no imaginário do futebol, aniquilando a própria noção de prazer associada ao consumo do jogo.
Trata-se de pensar para lá da justeza de um penalty ou do cartão vermelho que foi ou não foi mostrado… Creio que estamos a assistir à instalação de um novo estado conceptual das imagens. Dito de outro modo: creio que seria útil tomarmos consciência do poderoso efeito ideológico do VAR, não só na concepção e percepção das imagens do futebol, mas na própria existência social de todas as imagens.
Assistimos, assim, à generalização das imagens de uma nova ordem existencial. Ou melhor: uma nova ordem da existência através das imagens. Os factos deixam de ser encarados como ocorrências específicas, enredados na sua própria complexidade, muitas vezes indizíveis ou infilmáveis, para se apresentarem apenas como arranjos carentes. Carentes de quê? Pois bem, da própria caução com que a aparelhagem tecnológica os vem legitimar.
Este é o tempo em que vamos deixando que a tecnologia funcione como “Big Brother” de todos os nossos passos. Literalmente. Observe-se o exemplo benigno, mas sintomático, dos telemóveis que, mesmo sem intervenção do respectivo utilizador, medem os seus passos, propondo até regimes de gestão das nossas caminhadas: “Está a conseguir, em média, menos 1569 passos por dia esta semana do que na semana passada.” Como?
O “Big Brother” televisivo funcionou como terrível instrumento de naturalização deste estado de coisas, promovendo o olhar das câmaras como obscena maquinaria de espectáculo. Os respectivos criadores atreveram-se mesmo a instilar no imaginário social a ideia de que o espectáculo já não era… espectacular. Como sugeria a sua promoção, o “Big Brother” escapava a qualquer consideração moral porque se apresentava como a… “vida real”.
No caso do VAR, a gestão das imagens passou a impor até novas medidas do tempo. Quando assistimos a dois ou três minutos (por vezes, mais…) em que todos param dentro do campo, aguardando a palavra divina que há-de revelar-se no circuito de som do árbitro de campo, aquilo que triunfa está para além da noção legítima, mas limitada, de “verdade desportiva”. Desde os jogadores até aos espectadores caseiros, passando, claro, pelo público nas bancadas, somos todos reduzidos à condição de acólitos de uma nova religião das imagens.
Em 1970, num filme prodigioso chamado Le Vent d'Est [Os Ventos de Este], Jean-Luc Godard (na altura associado a Jean-Pierre Gorin, formando o chamado Grupo Dziga Vertov) apresentava um cartão com uma máxima cuja pertinência, meio século depois, apenas se reforçou: “Ce n’est pas une image juste, c’est juste une image.” Jogava ele, como é obvio, com a ambivalência da palavra francesa “juste”, funcionando primeiro como adjectivo, depois como advérbio: “Isto não é uma imagem justa, é apenas uma imagem.”
Agora, todas as imagens estão obrigadas a ser “justas”, promovendo uma noção pueril de justiça. Perdemos o gosto de ver o real porque esquecemo-nos que ver é deparar com as fronteiras instáveis desse mesmo real. Na prática, estamos a esquecer a beleza, não só do que olhamos, mas do próprio acto de olhar.

terça-feira, fevereiro 04, 2020

George Steiner (1929 - 2020)

Com a morte de George Steiner — no dia 3 de Fevereiro, em Cambridge, Inglaterra, contava 90 anos — desaparece uma das figuras públicas que mais, e de forma mais versátil, encarnou a noção clássica de intelectual: um viajante da história, desde as convulsões bélicas aos detalhes dos destinos individuais, numa demanda infinita de uma ética de enriquecimento das relações humanas e do seu sempre potencial humanismo.
Nascido em Paris, numa família judaica proveniente de Viena de Áustria, trabalharia o Holocausto como tema incontornável das memórias europeias. De qualquer modo, a sua obra está para além de quaisquer modelos tradicionais de escrita, oscilando entre a investigação e o confessionalismo, o ensaio histórico e a especulação filosófica. Errata: Revisões de uma Vida (1997) será o título mais conhecido e mais sintomático da sua visão do mundo. Da sua vasta bibliografia, constam livros como Nostalgia do Absoluto (1974), sobre a decomposição dos sistemas religiosos, Presenças Reais (1989), reflectindo os cruzamentos da "arte" e a "vida", ou Gramáticas da Criação (2001), questionando os limites da arte e da civilização ocidental. Entre as muitas distinções e homenagens que recebeu, inclui-se o grau de Doutor Honoris Causa atribuído pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 2009.

>>> Sobre a vitalidade da memória e a arte de contar histórias.


>>> Obituário no jornal The Guardian.

segunda-feira, fevereiro 03, 2020

O erro de Joaquin Phoenix

1. Decididamente, Hollywood está a alienar a energia que ajudou a colocar em marcha, ao defender e promover todas as formas de pluralidade no interior do mundo artístico. Por certo em nome da mais cândida celebração dessa pluralidade, Joaquin Phoenix veio dar um contributo trágico para tão cruel desagregação — a pureza militante, mais do que a simplificação dos factos, está a dar lugar à cegueira conceptual.

2. Foi na cerimónia dos BAFTA (os prémios da Academia Britânica das Artes Cinematográficas e Televisivas). Ao receber a distinção de melhor actor pelo seu trabalho em Joker, Phoenix lançou-se num arrazoado totalmente deslocado e contraproducente, considerando que "nós" (quem?) "estamos a lançar uma clara mensagem às pessoas de cor, dizendo-lhes que não são bem-vindas aqui." Mais do que isso, aquela situação (a aceitação do seu prémio?) seria sintoma de um cínico "tratamento preferencial" porque, argumentou ele, "é isso que oferecemos a nós próprios todos os anos" (quem, os brancos?) — em qualquer caso, convém conhecer estas palavras em contexto [video].

3. Sabemos que há componentes racistas na história de Hollywood. Afinal de contas, como separar a "fábrica de sonhos" da história da nação que a gerou? Sabemos também, convém acrescentar (e poucas vezes isso tem sido lembrado), que muitas formas de superação narrativa, política e simbólica da marginalização de minorias sociais ou de género passam pela história frondosa e fascinante de... Hollywood.

4. O certo é que nada disso parece tocar o discurso de Phoenix — será que ele se dá ao luxo de ignorar que a adaptação de To Kill a Mockinbird, de Harper Lee, foi filmada por Robert Mulligan em 1962? E que esse é apenas um exemplo isolado de uma história de muitos contrastes que, para acontecer, não necessitou das militâncias dos últimos dois ou três anos? Em boa verdade, há qualquer coisa de tristemente pueril na vocação panfletária das palavras de Phoenix, acabando por reduzir a complexidade do(s) contexto(s) a uma mera aritmética de quotas, tendencialmente paternalista. O seu erro consiste em querer "corrigir" tal complexidade com o esquematismo beato das quotas.

5. Mais do que isso, Phoenix parece esquecer-se de uma hipótese que valeria a pena ter em conta. A saber: talvez que os votantes o tenham premiado, não por causa da cor da sua pele, apenas porque a sua composição em Joker é de uma genialidade sem mácula. É triste ver um actor, assim, deitar fora a riqueza do seu mundo profissional com a água da ideologia.

A IMAGEM: Patrick Zachmann, 2019

PATRICK ZACHMANN / Magnum
Gerda Weissmann, sobrevivente do Holocausto,
mostra uma fotografia do seu marido, Kurt Klein,
judeu germano-americano que a libertou em 1945

Phoenix, Arizona, 2019

domingo, fevereiro 02, 2020

Polanski filma o "Caso Dreyfus"
— da difamação à verdade

J’Accuse - O Oficial e o Espião revisita o célebre “Caso Dreyfus”, em finais do século XIX, quando um militar francês de origem judaica foi injustamente acusado de traição; Roman Polanski realizou o filme a partir do livro de Robert Harris — este texto foi publicado no Diário de Notícias.

O mínimo que se pode dizer de J’Accuse - O Oficial e o Espião, de Roman Polanski, é que se trata de um filme contra a corrente. Desde logo, contra a noção de que o espectáculo cinematográfico não passa de uma sucessão de super-heróis fabricados com efeitos especiais… Afinal, há histórias de gente viva que vale a pena contar, continuar a contar. Mais do que isso: estamos perante um retorno, tão sereno quanto sofisticado, a uma arte narrativa que continua a acreditar nas virtudes do cinema como espelho crítico das convulsões da história colectiva.
Podemos classificar essa crença como primitiva? Sim, sem dúvida, creio mesmo que podemos e devemos resistir à futilidade de alguns “modernismos” digitais (mesmo não esquecendo as muitas maravilhas que as novas tecnologias têm gerado). J’Accuse - O Oficial e o Espião é um filme marcado por tensões emocionais que remontam à ideia fundadora do cinema como “coisa” próxima da vida, ao mesmo tempo capaz de ser maior que a vida.
E tanto mais quanto Polanski propõe um elaborado reencontro com o célebre “Affaire Dreyfus”, saga de um oficial do exército francês que, através de uma conjugação de preconceitos contra os judeus e perversas manipulações de bastidores, foi alvo de um cruel processo de difamação. Na história moral da França e, em boa verdade, da Europa, este é um capítulo de perturbante dramatismo, há muito inscrito na memória colectiva.


Polanski está longe de santificar a personagem de Alfred Dreyfus (1859-1935). Num certo sentido, pode mesmo dizer-se que ele é uma marioneta distante, nem sequer muito simpática, que conhecemos menos pelos seus actos e mais através das acções das outras personagens. E há, evidentemente, um inteligente golpe dramatúrgico na escolha de Louis Garrel para interpretar Dreyfus: sendo Garrel uma figura muitas vezes associada a um certo “visual” de sedução (publicitária ou não), Polanski trabalha a sua imagem alheando-se do cliché, com a frieza de quem cria uma escultura abstracta — o que, entenda-se, não é estranho à talentosa versatilidade do actor.
Tal “secundarização” de Dreyfus decorre, como é óbvio, da subtil arquitectura do argumento, baseado no livro de Robert Harris, O Oficial e o Espião (Ed. Presença); aliás, a autoria do argumento é partilhada por Harris e Polanski. Desde o primeiro momento, trata-se menos de seguir o calvário de Dreyfus e mais de conhecer o modo como foi cimentado o processo da sua culpa profissional e consequente culpabilização social.
Daí o peso decisivo da personagem do coronel Georges Picquart, exemplarmente interpretado por Jean Dujardin (o actor francês “oscarizado” em 2012, pela sua composição em O Artista). A saber: Picquart não é, de modo algum, o agente de qualquer forma de revolta contra o próprio colectivo a que pertence. Bem pelo contrário: é em nome das regras desse colectivo que ele se empenha na demonstração da inocência de Dreyfus.
Acusado de espionagem em favor da Alemanha, em 1894 (só seria ilibado em 1906), Dreyfus surge, assim, como o “ponto de fuga” de todo um sistema militar, político e judicial que nele encontra um bode expiatório das suas próprias contradições internas. Mais do que isso: Dreyfus é tratado como símbolo de uma “corrupção" que esse mesmo sistema castiga para preservar a sua utópica “pureza”.


Polanski “corrigiu” o título original do livro de Harris (An Officer and a Spy). Assim, no original francês, o filme intitula-se apenas J’Accuse. E faz todo o sentido que, entre nós, se tenha preservado essa afirmação contundente na primeira pessoa que, como é sabido, resume a decisiva viragem na reposição da verdade do “caso Dreyfus”: “J’Accuse” serviu de título à carta aberta do escritor Émile Zola a Félix Faure, Presidente da França, publicada a 13 de Janeiro de 1898, no jornal L’Aurore, acusando o governo francês de anti-semitismo e denunciando a prisão sem fundamento de Dreyfus.
Este é, afinal, um ponto de decisiva importância, também ele contrário aos valores correntes das narrativas industrial e comercialmente mais poderosas. Estamos perante um filme que revaloriza a energia da escrita, expondo o modo como o seu papel público pode ser decisivo na configuração da história, seja ela individual ou colectiva. Nesta perspectiva, J’Accuse - O Oficial e o Espião é também uma celebração do poder ancestral das palavras.