Hollywood recupera mais uma personagem do mundo da BD: Harley Quinn, ex-namorada do Joker. Margot Robbie investiu muito no projecto, na dupla qualidade de actriz e produtora, mas os resultados são de uma pobreza rotineira — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Fevereiro), com o título 'As aventuras (pouco) fantásticas de Margot Robbie'.
Nos últimos anos, no sistema de produção de Hollywood, os movimentos pela igualdade e representatividade de todas as diferenças (raça, género, etc.) têm desempenhado um importante papel, desde logo no plano profissional e financeiro, mas também na dinâmica ideológica e simbólica da própria indústria. Mesmo sem secundarizar tais avanços, está por esclarecer uma grosseira contradição. A saber: que levará os criadores (mulheres e homens) a pensar que a imitação, em tom feminino, dos maus filmes com heróis masculinos é uma maneira interessante e inteligente de defender o lugar das mulheres na própria indústria?
Birds of Prey (à letra: “aves de rapina”), realizado por Cathy Yan a partir da banda desenhada homónima da DC Comics, aí está como exemplo sintomático de tal contradição, nesse aspecto reforçando o equívoco sobre o qual se construía Oceans’8 (2018), dirigido por Gary Ross, medíocre versão feminina (?) da série iniciada com Ocean’s 11 - Façam as Vossas Apostas (2001), de Steven Soderbergh.
A personagem central, de seu nome Harley Quinn, apresenta-se como um curioso cruzamento de afirmação identitária, paródia burlesca e gosto de espectáculo. Isso mesmo está sublinhado no subtítulo, “A Fantabulástica Emancipação de uma Harley Quinn”, aliás traduzindo tão literalmente quanto possível o original “The Fantabulous Emancipation of One Harley Quinn” (ainda assim, a opção mais correcta teria sido “fantabulosa”, combinando os adjectivos “fantástica” e “fabulosa”). Sem esquecer, claro, que o nome Harley Quinn envolve uma brincadeira fonética com Harlequin (Arlequim), personagem emblemática da tradição, de raiz italiana, da Commedia dell’arte.
Que o projecto foi assumido como um especial desafio conceptual e artístico, prova-o o facto de o nome de Margot Robbie, intérprete de Harley Quinn, surgir também creditado como produtora do filme. O certo é que nem mesmo a versatilidade de tão talentosa actriz (recordemos apenas os exemplos recentes de Era uma Vez em Hollywood e Bombshell) basta para compensar as rotinas de produção que acabam por tomar conta do filme.
Há, de facto, qualquer coisa de demissão artística no modo como filmes como Birds of Prey se vão confundindo com a ilustração de um “caderno de encargos” que, cena sim, cena não, obriga a monótonas coreografias (combates físicos, perseguições de automóveis…) que só evoluíram num aspecto: o tratamento dos sons é cada vez mais esquemático e agressivo, colocando o espectador na posição de quem já não está a assistir a um espectáculo, mas apenas a defender-se dos disparos sonoros a que o sujeitam.
Ficam duas curiosidades. Em primeiro lugar, o facto de Harley Quinn ser a ex-namorada do Joker, personagem também pertencente a este universo da BD — seja como for, não há qualquer cruzamento, nem mesmo meramente factual, com o filme protagonizado por Joaquin Phoenix, até porque a pré-produção de Birds of Prey começou ainda antes da rodagem de Joker. Depois, o argumento tenta recuperar um dispositivo narrativo — a sistemática voz off da heroína — que pode fazer lembrar a tradição do filme “noir” das décadas de 30/40… Pode, de facto, mas em Hollywood tudo era bem diferente.