quarta-feira, abril 26, 2023

American Life, 20 anos depois

Ninguém é perfeito... mas há histórias com um final que roça a perfeição. Aconteceu agora com o teledisco de American Life, a canção-título do álbum de Madonna publicado há 20 anos.
Recordemos que, na altura do seu lançamento, a invasão do Iraque definia as principais coordenadas da geo-política, a ponto de Madonna ter retirado o teledisco de circulação: "Decidi não difundir o meu video. Foi filmado antes da guerra começar e não creio que seja apropriado emiti-lo neste momento. Devido ao volátil estado do mundo, por manifestação de sensibilidade e respeito pelas forças armadas, que apoio e por quem rezo, não quero correr o risco de ofender quem quer que seja que possa interpretar erradamente o significado deste video."
Duas décadas mais tarde, American Life, realizado por Jonas Akerlund, continua a ser aquilo que era: uma obra-prima cujo fulgor narrativo é indissociável da sua contundente mensagem contra a guerra e as muitas formas de mediatização gratuita das respectivas imagens (e sons). Com um toque de magia: podemos vê-lo agora em imaculada versão 4K.

quinta-feira, abril 06, 2023

Elephant faz 20 anos

Elephant, quarto registo de estúdio de The White Stripes, objecto fulcral da sua discografia e do seu rock realmente independente, foi lançado no dia 1 de abril de 2003. Para assinalar o 20º aniversário do álbum, Jack White e Meg White vão relançá-lo (21 abril) numa edição Deluxe que inclui um concerto no Aragon Ballroom de Chicago — desse evento, eis The Hardest Button to Button; em baixo, o video original, dirigido por Michel Gondry.



Robert Blake & Robert Blake

Hollywood, 1967: Robert Blake em A Sangue Frio

No dia 9 de março de 2023 morreu Robert Blake, um dos grandes actores das décadas de 1960/70 em Hollywood, com uma filmografia que vai de Richard Brooks a David Lynch — este texto evocativo foi publicado no Diário de Notícias (12 março).

O actor Robert Blake faleceu no dia 9 de março, em Los Angeles — contava 89 anos. Inevitavelmente, as notícias da sua morte recordaram as muitas atribulações da sua existência: uma infância marcada pelo abuso de um pai alcoólico que o levaria a fugir de casa aos 14 anos; a condição de estrela precoce em Hollywood, graças à série de filmes infantis The Little Rascals, uma produção da MGM cujo elenco integrou de 1939 a 1944 (portanto, entre os seis e os onze anos); o suicídio do pai em 1956, tinha Blake 23 anos; enfim, o episódio trágico da morte de Bonny Lee Bakley, a sua segunda mulher, em 2001, assassinada a tiro à porta de um restaurante de Los Angeles.
As duas últimas décadas da vida de Blake ficaram marcadas por este episódio. Em 2002, foi acusado da morte da mulher, tendo cumprido um ano de prisão. Em novo julgamento, três anos mais tarde, seria absolvido. Um processo civil levou-o de novo ao tribunal, para ser julgado por eventual cumplicidade na montagem do crime, sendo condenado a pagar 30 milhões de dólares (valor mais tarde reduzido para metade) aos quatro filhos de Bonny Lee Bakley. Depois de ter declarado falência, Blake abriu um canal no YouTube, “I ain’t dead yeat” (à letra: “Ainda não estou morto”) que utilizou para partilhar memórias da sua carreira. Oficialmente, as condições da morte de Bonny Lee Bakley continuam por esclarecer.
No obituário publicado pela revista Variety, são recordadas as palavras breves, mas radicais, com que Blake, numa entrevista dada em 2011, resumiu a sua condição profissional: “Se não tivesse tido uma vida tão doentia e tão atribulada, talvez não tivesse sido um actor.” Como é óbvio, importa não desviar tais palavras para o determinismo com que, hoje em dia, se faz psicologia “social”, nomeadamente em alguns “talk shows” televisivos e na chamada imprensa cor-de-rosa. Acontece que, porventura por causa das convulsões da sua existência, mas sobretudo através de uma invulgar exigência profissional, Blake foi uma figura central (a meu ver, um dos mais notáveis actores) do cinema de Hollywood nas décadas de 1960/70.
Ao ler alguns obituários de Blake escritos nos EUA, não posso deixar de ficar chocado com a ligeireza com que é referido o seu filme Tell Them Willie Boy Is Here (entre nós, O Vale do Fugitivo). Desde logo porque marcou o regresso à realização de Abraham Polonsky (1901-1999), um dos “Dez de Hollywood”, marginalizados durante as perseguições do período “maccartista”, mas sobretudo porque se trata de um título fulcral na reconversão narrativa e simbólica do lugar dos índios no cinema americano.
Nele se encena a tragédia de Willie Boy (Blake), um índio marginal, acusado de um crime, que, depois de a sua tribo ter sido “deslocada” do território dos seus antepassados, se confronta com o xerife (Robert Redford) que o persegue… Dir-se-ia que, também em algum jornalismo cinematográfico, o “politicamente correcto” dos nossos dias se alimenta de uma desavergonhada ignorância, a ponto de as narrativas que abordam a complexidade da história dos índios (também das mulheres, também dos afro-americanos) serem reduzidas a um fenómeno exclusivo da última meia dúzia de anos… De facto, Tell Them Willie Boy Is Here transporta esse pecado insuperável de ter sido estreado há mais de meio século, em 1969! Já agora, com uma curiosa adenda portuguesa: foi o filme de abertura do cinema Apolo 70, em Lisboa, no dia 27 de maio de 1971, com programação da responsabilidade de Lauro António.
Entre os títulos incontornáveis da filmografia de Blake, recordo em particular o prodigioso A Sangue Frio (1967), de Richard Brooks, uma adaptação do romance homónimo de Truman Capote, investigando um crime ocorrido em 1959, no estado do Kansas. Muitas vezes referido como modelo do chamado “romance de não-ficção”, o livro de Capote (editado entre nós pela Dom Quixote, com tradução de Maria Isabel Braga) corresponde à emergência de novas matrizes realistas que o filme de Brooks transfigura numa impressionante narrativa cinematográfica, rodada a preto e branco, com direcção fotográfica de Conrad Hall (sem esquecer a música composta por Quincy Jones).
Ao interpretar um dos dois homens que assaltam e assassinam os membros de uma família rural, Blake consegue expor a perturbante “naturalidade” de um comportamento maligno que ignora a simples possibilidade de qualquer laço social — o mesmo se dirá, aliás, da composição do outro assaltante, por Scott Wilson (1942-2018), eterno e talentoso secundário de Hollywood (uma das suas derrradeiras personagens, entre 2011 e 2018, foi na série televisiva The Walking Dead).
Por alguma razão, em Lost Highway/Estrada Perdida (1997), David Lynch escolheu Robert Blake para interpretar o “Homem Mistério” — seria o seu último filme. É ele que, numa festa, sugere a um dos convidados, de nome Fred (Bill Pullman), que já se tinham encontrado. Fred acha que não e pergunta-lhe onde isso terá acontecido. Blake responde: “Em sua casa. Não se recorda?” Fred diz que não, o que leva Blake a esclarecer que, na verdade, naquele preciso momento, ele próprio está em casa de Fred…
Perante a reacção de Fred, Blake sugere que ele telefone para a sua própria casa — assim faz e o “Homem Mistério”… responde do outro lado [video]. Não haveria maneira mais eloquente de expor a clivagem interior da identidade humana. Ou, pelo menos, o medo de a pressentir através do misto de carnalidade e abstração que um actor pode dar a ver.

quarta-feira, abril 05, 2023

Memória (musical) de José Duarte

José Duarte faleceu no dia 30 de março, contava 84 anos [DN]. Deixa um legado precioso como divulgador do jazz e, mais do que isso, militante de uma cultura do conhecimento e da paixão artística. O seu programa da Antena 1 — Cinco Minutos de Jazz — é o perfeito cartão de visita desse legado. Aqui fica o tema que, a partir da sua criação, em 1966 (na Rádio Renascença), serviu de entrada ao programa: Lou's Blues, do saxofonista norte-americano Lou Donaldson, faixa de abertura do seu álbum The Time Is Right (1960).

segunda-feira, abril 03, 2023

Ryuichi Sakamoto (1952 - 2023)

[ Wikipedia ]

Da música ao cinema, incluindo a música para cinema, o japonês Ryuichi Sakamoto é uma personalidade única e fascinante da história artística das últimas décadas: faleceu, vítima de cancro, no dia 28 de março (a morte só foi divulgada a 2 de abril, já depois das cerimónias fúnebres) — contava 71 anos.
Dos tempos heróicos da banda electrónica Yellow Magic Orchestra, fundada em 1978 com Haruomi Hosono e Yukihiro Takahashi, até ao álbum 12, lançado em janeiro de 2023, reflectindo as condições de saúde do seu autor, Sakamoto foi um criador de muitos cruzamentos estéticos, sempre seduzido por um intimismo tendencialmente minimalista, mesmo quando as suas composições não temiam expor-se com pompa e circunstância.
Um dos seus títulos mais universais é, por certo, o filme Feliz Natal, Mr. Lawrence (1983), de Nagisa Oshima, em que partilhava o protagonismo com David Bowie — a respectiva banda sonora valeu-lhe um Globo de Ouro da Associação da Imprensa Estrangeira de Hollywood. Com a música de O Último Imperador (1987), de Bernardo Bertolucci, obteve um Oscar da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (partilhado com David Byrne e Cong Su).

>>> Yellow Magic Orchestra, Rydeen (1979).


>>> Trailer de Feliz Natal, Mr. Lawrence.


>>> Piano solo: tema de Feliz Natal, Mr. Lawrence.


>>> We Love You (Jagger/Richards), canção incluída no álbum Beauty (1989) — com Arto Lindsay, no Apollo Theater, Nova Iorque, 1990.


>>> Snake Eyes (1998), tema para o filme homónimo de Brian de Palma, com Nicolas Cage.


>>> Como intérprete de Rain (1993), de Madonna — realização de Mark Romanek.


>>> "20220304", faixa final de 12, derradeiro álbum de estúdio.


>>> Obituário em The Japan Times + Rolling Stone + Le Monde.
>>> Entrevista no New York Times (14 julho 2021).
>>> Site oficial de Ryuichi Sakamoto + Instagram.

sábado, março 25, 2023

A sociedade do VAR

Charlton Heston em Os Dez Mandamentos (1956),
celebrando o prazer do espectáculo

A ciência do video-árbitro vai a par de uma quase total ausência de pensamento sobre a cultura do futebol — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 março).

O título desta crónica podia ser: “Os erros humanos fazem falta ao futebol”. Seria polémico, mas já bastam as polémicas que todos os dias brotam da calçada. Reconheço mesmo que só valeria como brincadeira fútil, ainda que sugestiva, que nos afastaria ainda mais de qualquer reflexão interessante sobre o novo altar do futebol.
De que falo, então? Do VAR, precisamente. E das atribulações que introduziu na vida social do futebol. Eis que assistimos a um golo prodigioso, celebramos o feito… mas há um senhor de equipamento diferente que usa um apito e, de repente, atrai a nossa atenção. Porquê? O seu olhar vago, mas iluminado, significa que alguma voz transcendental está a comunicar com ele. Aliás, toca no auricular que usa para que não tenhamos dúvidas sobre a epifania que protagoniza — esperamos um minuto, dois minutos, três minutos… e o senhor do apito levanta o braço: não foi golo!
Parece-me óbvio que quem inventou o video-árbitro nunca gostou de cinema. Não vejo outra explicação… Lembrem-se, por exemplo, da cena de Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille, em que Charlton Heston, em pose monumental de Moisés, abre as águas do Mar Vermelho para oferecer um caminho ao seu povo. Se DeMille fosse fã do VAR, na cena seguinte o mesmo Moisés, mesmo sem auricular, receberia uma mensagem divina: o milagre teria que ser revertido porque ele não tinha renovado a licença de pesca em alto mar… Convenhamos que seria preciso reescrever a história e a mitologia de Hollywood.
A ironia é cruel e a sua crueldade gasta-se depressa. Ainda assim, talvez ajude a pensar para lá do seu confesso esquematismo. E, sobretudo, a reconhecer que há na sociedade portuguesa uma inércia de pensamento que resiste a qualquer reflexão sobre o futebol como domínio nuclear, emocional e intelectual, na formação e promoção de valores sociais.
Na prática, o VAR tende a ser encarado e discutido como uma via imaculada para uma verdade sancionada pelo discurso intocável da ciência. Estranha crença: afinal, observando o panorama circundante, todos os dias contaminado por acusações cruzadas de incompetência ou corrupção, somos levados a reconhecer que a santificação do discurso científico já teve dias mais felizes.
Acontece que o futebol, sobretudo o futebol do VAR, deixou de ser um fenómeno estritamente futebolístico. E não se trata, entenda-se, de discutir o empenho e a boa fé dos que abordam o futebol em nome da transparência que defendem para a prática desportiva. Afinal de contas, não foi preciso inventar o VAR para reconhecermos o valor moral e a pertinência técnica de tal discurso — no século passado, andava eu na escola primária e, mesmo sem VAR, os temas eram os mesmos.
Acontece que, porventura de modo incauto, o sistema de pensamento que o VAR sustenta — e pelo qual é sustentado — reforça uma forma de dependência e interdependência social que se tornou ideologicamente dominante: qualquer actividade humana tende a ser vista, encenada e, no limite, celebrada como humanamente descartável… a não ser que a possamos descrever, percepcionar e, sobretudo, sancionar através de alguma legitimação científica.
O tecido social passou mesmo a ser frequentemente exposto, desde logo no espaço mediático, como “algo” que existe entre duas alternativas, únicas e insuperáveis: ou a nossa vida consegue ilustrar um equilíbrio redentor, legitimado por algum discurso científico (à maneira do VAR), ou então só nos resta prepararmo-nos para algo de catastrófico.
Bem sabemos que o nosso presente (social e político, nacional e internacional) está cheio de dramas brutais e perturbantes. Mas o catastrofismo reinante não decorre de tais dramas, mesmo se muitas vezes os transfigura em histeria quotidiana. É um catastrofismo ambiental, de ideias fracas e espasmos violentos: no limite mais caricatural (cujas boas intenções serão, por certo, respeitáveis), já nem sequer existe a possibilidade de termos “chuva intensa”. Nada disso: entramos em “alerta amarelo”.
“Alerta” tornou-se mesmo uma palavra de ordem da banalidade televisiva (incluindo a versão lusitana, cunhada por D. Afonso Henriques, de “breaking news”). “Alerta” passou a ser o estado compulsivo do imaginário social — como o jovem repórter que, já há alguns anos, à porta de um estádio de futebol, comentando uma manifestação de adeptos, informava que “ainda não há violência”…
Os eventos que o VAR, sempre “alerta”, vai convocando para o seu tribunal, alimentado pela nossa candura científica, conseguem mesmo gerar o contrário do seu programa. A saber: esvaziar o gosto, o prazer e, por fim, o pensamento do próprio espectáculo. Ou, então, sou eu que não respeito as linhas virtuais traçadas no relvado e estou fora de jogo.

domingo, março 19, 2023

Eu Sou Clarice
— um grande acontecimento teatral

"Como me encontro, espelho, relaciono com o mundo que nos rodeia e qual a possibilidade de ser feliz nisso" — eis uma via de afirmação/interrogação que Rita Calçada Bastos relança a partir da obra de Clarice Lispector (1920-1977) em Eu Sou Clarice, um espectáculo contagiante. Entenda-se: capaz de nos fazer sentir o teatro como duplo e reinvenção, máscara e revelação da vida que vivemos (ou julgamos viver).
Com cenário da própria encenadora, Eu Sou Clarice centra-se numa luminosa composição de Carla Maciel. Mais do que "retratar" a escritora, a actriz celebra-a como personagem, ora transparente, ora indecifrável, de um universo habitado por uma pluralidade de personagens geradas pelo próprio acto de escrever.
Estreado no São Luiz em outubro de 2021, Eu Sou Clarice está agora no Teatro Aberto (até 2 de abril): um acontecimento singular, capaz de desafiar, de forma tão inteligente quanto delicada, as nossas certezas sobre o acto de representar a vida — ou de viver através da representação. 
 

sexta-feira, março 17, 2023

Bono e The Edge na NPR

Eis uma especialíssima edição dos "Tiny Desk Concerts" da NPR: Bono e The Edge interpretam quatro das canções dos U2, do álbum All That You Can't Leave Behind (2020), agora revistas e reinventadas para o recente Songs of Surrender. Com eles está o Coro da Duke Ellington School of the Arts, com este alinhamento:

* Beautiful Day
* In a Little While
* Stuck in a Moment You Can't Get Out Of
* Walk On

domingo, março 12, 2023

Bob Dylan, os livros e as canções
— SOUND + VISION / FNAC [hoje, 17h00]

Bob Dylan volta a ser referência principal do nosso Magazine — a propósito do lançamento do seu livro sobre "a filosofia das canções modernas", propomos uma viagem através da escrita, da música e das imagens do autor de Like a Rolling Stone.

* FNAC Chiado: hoje, dia 12, 17h00.