domingo, outubro 11, 2015

O tempo televisivo [citação]

>>> (...) o tempo é um género extremamente raro na televisão. E se se empregam minutos tão preciosos para dizer coisas tão fúteis, é porque essas coisas tão fúteis são de facto muito importantes na medida em que escondem coisas preciosas. Se insisto neste ponto é porque sabemos, por outro lado, que há uma proporção muito importante de pessoas que não lêem jornais diários, que se dedicam de corpo e alma à televisão como sua única fonte de informações. A televisão tem uma espécie de monopólio de facto sobre a formação dos cérebros de uma parte muito importante da população. Ora, pondo a tónica nos casos do dia, preenchendo o tempo raro com vazio, com nada ou quase-nada, afastam-se as informações pertinentes que o cidadão deveria possuir para poder exercer os seus direitos democráticos. Por esta via, traça-se uma divisão, em matéria informativa, entre os que podem ler os diários chamados sérios, se é que estes continuam a ser sérios perante a concorrência da televisão, os que têm acesso aos jornais internacionais, às emissoras radiofónicas em línguas estrangeiras e, por outro lado, os que têm por única bagagem política a informação fornecida pela televisão, quer dizer aproximadamente nada.

PIERRE BOURDIEU
Celta Editora, Oeiras, 1997

Fátima Lopes por Cristina Ferreira

As líderes do populismo televisivo gostam de se expor em cenários que, de acordo com os valores do seu sistema ideológico, correspondem a uma espécie de promoção aristocrática. Instaladas em tão sedutor contexto, discorrem, com muitos risos e sublinhados de satisfação [video], sobre as glórias profissionais, a vida familiar e a sexualidade (incluindo uma revolucionária profilaxia medicinal: "faz bem a tudo, até à pele"), sem esquecer esse magno lugar-comum de todas as demagogias mediáticas que é ser "uma mulher como as outras".


Sem surpresas. Ainda assim, a celebração jornalística de Fátima Lopes por Cristina Ferreira consegue uma proeza que, devo confessá-lo com humildade, transcende todas as minhas expectativas.
Compreendo que haja uma homogeneidade televisiva e discursiva que tenha feito com que, no plano da simbologia afectiva, o universo de Cristina Ferreira surgisse, por exemplo, como a primeira plataforma de lançamento da candidatura presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa. Em todo o caso, chamar "bomba" a Fátima Lopes constitui um assinalável feito semiológico. Trata-se, afinal, de deslocar uma palavra (bomba) do seu mais convencional contexto machista, fazendo-a funcionar como bandeira de um universo habitado e conjugado por mulheres, para mais apresentando-se como suprema exaltação de um ideal feminino — ideal que se projecta, e nos projecta, em utópicos territórios onde é possível imaginar coisas tão redentoras como "um sabonete que hidrata e deixa na sua pele um vestido de seda".
Eis um bom tema para as mulheres do Bloco de Esquerda, se tiverem algum intervalo disponível na conversão do seu ódio ao Partido Socialista em tocante namoro para maior glória da "esquerda" — em boa verdade, eis um bom tema para qualquer partido político, de "esquerda" ou "direita", quando, por milagre, se esforçarem por articular alguma ideia sobre os valores mediáticos e televisivos a que o nosso povo está sujeito.

Simplicidade [citação]

>>> Agrada-me a ideia de [daqui a 10 ou 15 anos] me limitar a sentar-me num banco, com uma garrafa de vinho, uma guitarra, preenchendo a cena com a minha 'stand-up comedy'. Em boa verdade, penso que seria capaz de fazer um espectáculo interessante. Agrada-me a ideia de fazer uma coisa simples.

MADONNA
7 Outubro 2015

O código de Dre Hocevar

O trio. Clássico? Sim, talvez. Digamos, para simplificar, que o verdadeiro classicismo é sempre o que se conjuga no futuro. Talvez por isso o centro está na bateria de Dre Hocevar. Aliás, questionemos qualquer metáfora geométrica: não há centro, antes uma contemplação extasiada e, à sua maneira, espectacular da presença do violoncelo de Lester St. Louis, com o piano de Bram de Looze a fingir, em feliz cumplicidade com os seus pares, que a liderança lhe pertence.
Digamos que o álbum do trio de Dre Hocevar, Coding of Evidentiality (viva a Clean Feed!), é um daqueles objectos capaz de nos colocar no ponto quente de uma encruzilhada em que a pulsão futurista se confunde com a ilusão redentora de que estamos a reencontrar sons que já nos encantaram noutra idade da música, numa dimensão outra do tempo artístico. Sendo aqui a arte essa coisa de sorriso terno que nos faz prescindir de qualquer certeza temporal — ouça-se o bem chamado Form of the Future Thought.


>>> Site oficial de Dre Hocevar.

sábado, outubro 10, 2015

Hollywood, anos 50, pelos irmãos Coen

Os bastidores de Hollywood revistos pelos irmãos Coen. Com George Clooney em actor/gladiador. E um daqueles elencos "impossíveis" que Joel e Ethan Coen sabem organizar, incluindo Scarlett Johansson, Channing Tatum, Josh Brolin, Ralph Fiennes, Jonah Hill, Tilda Swinton, Frances McDormand e... Dolph Lundgren (o rival de Sylvester Stallone em Rocky IV) — o trailer é uma pequena obra-prima de humor e detalhe; a estreia ocorrerá em Fevereiro de 2016 (dia 25 em Portugal), não sendo arriscado supor que o lançamento mundial ocorra no Festival de Berlim (11/21 Fev.).

PS — ser ou não ser de "esquerda"

ALEXANDRE NEVSKY (1938)
* A direita e a esquerda — outra vez. Permitam-me um desabafo. Sou dos eleitores portugueses que se sentem profundamente incomodados pelo espectáculo da “esquerda” a que temos assistido nos últimos dias. Assim, depois de passarem meses a difamar o PS (“difamar” é uma forma suave de colocar a questão), forças políticas como o PCP e o Bloco de Esquerda aparecem agora, lacrimejantes, a mostrar uma comovente disponibilidade para abrir os braços a esse mesmo PS. Em nome de quê? Da unidade da “esquerda”...

* Tudo isto é também, ainda e sempre, uma questão de imagens. Desde logo, porque bastou observar os tempos de campanha eleitoral no espaço televisivo para confirmarmos que, mesmo não escamoteando a visão singular de algumas personalidades, as forças políticas portuguesas não têm a mais pequena ideia criativa sobre a cultura audiovisual (que, em boa verdade, não pesa em nenhum dos seus discursos oficiais ou comportamentos institucionais). Que forças políticas? Todas. De “direita” e “esquerda”, desde a coligação no poder ao mais microscópico arremedo de partido.

Vieira da Silva
* Dir-se-ia que todas encomendaram as suas campanhas às mesmas agências publicitárias, explorando modos de encenação (a postura das pessoas, o jogo cromático, os tipos de letra, etc.) que se confundiam com as mais recentes promoções de alguns hiper-mercados (sendo as campanhas do Continente ou do Pingo Doce, apesar de tudo, iconograficamente mais ricas, porque mais trabalhadas, do que a banalidade que encheu as nossas ruas e os ecrãs de televisão).

* Escusado será dizer que um dos valores mais viscerais gerados pelo 25 de Abril — a possibilidade de pensar também para além da dicotomia “direita/esquerda” — tem sido reduzido a uma insignificante excentricidade. O caso da “esquerda” é tanto mais sintomático quanto, em boa verdade, há no seu discurso mítico (em muitos aspectos, místico) a sugestão mais ou menos ambígua, mas socialmente muito poderosa (afectando a própria “direita”), de que a “esquerda” detém uma espécie de mandato transcendental: mesmo com erros e desvios, o seu discurso teria sempre a bênção de alguma “razão”.

* Como sair disto? Não sei. Seja como for, observo como tudo acontece num tecido social infestado de imagens, sem que ninguém, na cena política, mostre alguma disponibilidade para pensar a nossa cultura audiovisual. Como se estivéssemos condenados a olhar, por exemplo, para um clássico tão genial como Alexandre Nevsky (1938), de Sergei M. Eisenstein, e fôssemos compelidos a reconhecer nele um padrão universal de filme de “esquerda”, confundindo a sua utilização simbólica com as contradições da sua génese. Acontece que Alexandre Nevsky foi encomendado por um ditador chamado Estaline, o que baralha qualquer purificação de “esquerda”... Sem esquecer que, neste nosso cantinho, essa mesma “esquerda” se demitiu de nos ajudar a lidar com o devastador poder social do populismo televisivo. Obviamente, é mais fácil atacar o PS. Até porque o PS não tem coragem para se demarcar da “esquerda” que o insulta.

Brontë + Téchiné

Huppert + Adjani + Pisier
Mais de trinta anos depois, As Irmãs Brontë, de André Téchiné, chega, finalmente, ao mercado português do DVD — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Outubro), com o título 'Revendo o romanesco de André Téchiné'.

Há cerca de três meses, quando tive oportunidade de entrevistar André Téchiné a propósito da estreia portuguesa de O Homem Demasiado Amado, interroguei-o sobre o facto de o tema do filme não ter suscitado grandes considerações em França (desde logo no momento da sua passagem, extra-competição, no Festival de Cannes de 2014). Trata-se, de facto, da abordagem de um muito badalado escândalo da década de 1970, tendo por pano de fundo as atribulações financeiras dos casinos da Côte d’Azur — apesar da repercussão de tais factos na sociedade francesa, o filme de Téchiné teve um impacto apenas mediano.
Acontece aos melhores. E Téchiné, nome fulcral do cinema francês pós-Nova Vaga, continua a ser um autor mal conhecido e nem sempre devidamente divulgado. Em Portugal, por exemplo, dois dos seus títulos mais recentes não chegaram às salas, nem sequer existem disponíveis em DVD: Les Témoins (2007), espantosa crónica sobre os tempos angustiados de descoberta da epidemia da sida, e La Fille du RER (2009), subtil abordagem do caso verídico de uma jovem que se apresenta como vítima de ataques anti-semitas, gerando uma enorme agitação mediática.
Em boa verdade, as lacunas na divulgação da obra de Téchiné são antigas. Um filme fulcral na sua dinâmica criativa — As Irmãs Brontë (1979) — nunca estreou no nosso país (tendo passado uma vez, há cerca de trinta anos, na RTP). Daí que a sua recente edição em DVD constitua uma especialíssimo acontecimento, ajudando-nos a compreender como a sua visão do mundo é indissociável de um romanesco de raiz literária.
Ao encenar a vida íntima das irmãs que marcam o século XIX da literatura inglesa, Téchiné exprime-se muito para além da lógica determinista de muitos telefilmes, evitando reduzir a obra a uma consequência “automática” dos elementos biográficos. De modo porventura algo desconcertante, o filme confere especial evidência à figura de Branwell Brontë (Pascal Greggory) e, em particular, a um quadro por ele pintado, figurando-se junto às suas três irmãs. Algures na fronteira entre um desejo vital e a pulsão de morte, esse quadro (de que Branwell, a certa altura, irá rasurar a sua própria imagem) surge como sinal de uma memória trágica que Téchiné acompanha até 1852, numa altura em que Charlotte Brontë, já consagrada através do romance Jane Eyre, é a única sobrevivente.
Com Isabelle Huppert, Isabelle Adjani e Marie-France Pisier (como Anne, Emily e Charlotte, respectivamente), As Irmãs Brontë ilustra a energia de um cinema francês fortemente enraizado num duplo classicismo (literário e cinematográfico), ajudando a esclarecer as relações de Téchiné com um riquíssimo património a que pertencem as obras de cineastas como Jean Renoir ou Max Ophüls. Já na altura do seu lançamento, seria um objecto fora de moda — a sua marginalidade estética não mudou e o seu fascínio também não.

sexta-feira, outubro 09, 2015

No 75º aniversário de John Lennon

A história e a mitologia de John Lennon desembocam, drasticamente, no dia 8 de Dezembro de 1980, data do seu assassinato, em Nova Iorque. Mas as rotinas do calendário permitem-nos também relembrar que nasceu em Liverpool, a 9 de Outubro de 1940 — faz hoje 75 anos.
Eis dois momentos para revisitar a sua obra, ambos depois do fulgor dos Beatles: primeiro, o som de Sweet Little Sixteen, clássico de Chuck Berry integrado em Rock'n'Roll (1975), álbum simbólico, por excelência, de toda uma filiação cultural; depois, o video de Woman, canção de amor para Yoko Ono, incluída em Double Fantasy (1980), lançado cerca três semanas antes da morte de Lennon.




>>> John Lennon no All Music.
>>> Evocação de John Lennon na Rolling Stone.

Wim Wenders na Cinecittà

Wim Wenders escolheu o estúdio nº 5 da Cinecittà, lugar mítico do trabalho de Federico Fellini, para rodar um delicioso e irónico anúncio aos óculos Persol — ou como a nostalgia cinéfila ecoa nos labirintos da publicidade.

João Bénard da Costa, cinéfilo

LAURA (1944)
O filme de Manuel Mozos, João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas que Eu Amei, impele-nos a recordar as marcas do desejo cinéfilo do crítico e programador — este texto integrava um dossier sobre o filme, publicado no Diário de Notícias (3 Outubro).

Nos genéricos dos filmes em que foi dirigido por Manoel de Oliveira, a começar por O Passado e o Presente (1972), o actor João Bénard da Costa mudava de nome (para Duarte de Almeida), como se a transfiguração imposta pela câmara implicasse a evidência de uma outra identidade. Era também uma forma irónica de ser e não ser no interior da vertigem do cinema. Daí que, com especial gosto, ele escrevesse como quem deambula por filmes que resistem a encerrar-se num sentido único e unívoco. Se o senso comum gosta de perguntar a um crítico qual é o “significado” de um filme, ele não podia gostar do senso comum — no cinema, o que mais conta não é a unicidade dos significados, mas a pluralidade das significações, quer dizer, essa evidência que nos diz que o real que vemos é também aquele que já começámos a perder.
Lembro-me, por exemplo, do seu fascínio por Laura (1944), de Otto Preminger. E embora correndo o risco de atraiçoar a sua memória, direi que ele via no filme a perfeita ilustração da utopia romântica — no limite, perante a notícia da morte de Laura, Dana Andrews era mais feliz perante a pintura de Gene Tierney do que quando ela, saída não se sabe de onde, lhe aparecia em carne e osso...
São divagações imprecisas, eu sei. Mas decorrem de um valor fundamental — o gosto pela multiplicação das leituras dos filmes — que está para além da subjectividade radical que estas coisas atraem. Dito de outro modo: no caso de João Bénard da Costa, a celebração das diferenças dos filmes exprimia-se também através de conceitos dinâmicos de programação, muito para além de qualquer academismo arquivista e museológico. Querer ver é também uma arte de dar a ver.
Na Fundação Gulbenkian e na Cinemateca, a sua actividade de divulgador ilustra uma dialéctica, herdada do trabalho desenvolvido por Henri Langlois (1914-1977) à frente da Cinemateca Francesa, em que a acumulação das memórias não pode ser dissociada de toda uma política de amostragem em que cada filme pode ser o mesmo e o seu contrário. Entenda-se: cada filme que regressa, sendo inevitavelmente igual, é também radicalmente outro porque se vem mostrar, inscrever e redescobrir num novo presente.
Nos dias que correm, de triunfo do mais pobre imaginário futebolístico (“qual é para si o significado do golo que marcou?...”), nada disto é muito respeitado — nem, em boa verdade, muito comum. Com João Bénard da Costa, podemos aprender a ver os filmes como uma arte de nos perdermos, para nos reencontrarmos em algum lugar ainda sem nome. Sem esquecer que, no seu jogo concreto de coisas abstractas, os filmes são apenas a própria vida.