Para Sarah Wynn-Williams, o trabalho no Facebook começou como uma utopia, para desembocar numa cruel frustração. No seu livro Careless People, a rede social de Mark Zuckerberg surge como uma empresa em que os mecanismos de procura de lucro estão longe de ser saudáveis — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 julho).
Como evoluiu a Internet nas últimas duas décadas? Entre as respostas possíveis, das mais radiosas às mais inquietantes, nenhuma pode ignorar a história do Facebook. Tendo chegado recentemente aos 3 mil milhões de utilizadores, talvez possamos resumir o seu peso virtual (mas muito concreto) através de um contraste esquemático. Assim, logo após a sua fundação, em 2004, a rede social de Mark Zuckerberg foi celebrada por vozes de muitos quadrantes (incluindo o espaço político) como o paraíso de todas as comunicações — de repente, era possível praticar uma partilha global de mensagens que garantia a pureza virginal e ecuménica de uma humanidade milagrosamente pacificada.
Depois, o Facebook passou a ser associado a dramas muito reais, como tal questionado e investigado, dramas envolvendo conteúdos que vão desde formas de difamação de pessoas LGBT até à repressão da minoria muçulmana em Myanmar, passando pelo processo (social, justamente) que transformou Donald Trump em presidente dos EUA.
Lembremos um dos ecos artísticos de tudo isso: em 2010, David Fincher realizou o filme A Rede Social, uma das obras-primas que Hollywood gerou neste século XXI, abordando o nascimento do Facebook como uma pueril religião da comunicação “sem contradições”, afinal enraizada numa clássica estratégia de negócio e multiplicação de lucros. Construído a partir de um argumento assinado por Aaron Sorkin (que lhe valeu um Oscar), o filme tinha como base o livro The Accidental Billionaires (ed. Doubleday, 2009), de Ben Mezrich (a edição portuguesa, Milionários Acidentais – A Fundação do Facebook, surgiu em 2010, com chancela da editora Lua de Papel).
Em 2021, Sheera Frenkel e Cecilia Kang, jornalistas do New York Times, publicaram An Ugly Truth (ed. The Bridge Street Press), notável investigação sobre a “batalha pelo domínio” comunicacional do Facebook (a tradução portuguesa, com o título Manipulados, foi lançada em 2022 pela editora Objectiva). Agora, podemos descobrir uma genuína crónica intimista, contada por Sarah Wynn-Williams que viveu sete anos da sua vida profissional no interior do Facebook — chama-se Careless People (ed. Macmillan) e, ao longo dos meses de maio/junho, passou seis semanas na lista de “best-sellers” do New York Times.
Nascida na Nova Zelândia, a autora trabalhou na embaixada do seu país em Washington, tendo entrado para o Facebook em 2011, em pouco tempo ascendendo ao cargo de coordenadora da estratégia global da empresa (“global public policy”). A sua experiência diplomática ajudou-a a abrir vias de diálogo com os poderosos deste mundo. O certo é que aquilo que começou por ser a realização de um sonho, rapidamente se transformou em pesadelo, primeiro por causa da desorganização quase burlesca que encontrou, depois descobrindo-se como peça incauta de um xadrez cujo “ponto de fuga” era sempre a figura intocável de Mark Zuckerberg. Muito cedo deparou com uma centralização que, mais do que empresarial, decorria de uma “psicologia” bizarra: “Foi-me gentilmente sugerido que, sendo Mark um ingénuo político, não é do interesse da companhia colocá-lo em encontros com chefes de estado”.
O livro é tanto mais interessante, até mesmo emocionalmente envolvente, quanto Sarah Wynn-Williams não está a defender uma “tese”, mas sim a percorrer memórias de uma experiência pessoal iniciada em tom utópico para desembocar numa cruel frustração. Daí os elementos pessoais da narrativa, desde logo a experiência da gravidez vivida durante os primeiros tempos no Facebook, a par de diversos dados perturbantes, incluindo a descoberta da partilha de informações sobre novos recursos de inteligência artificial com o Partido Comunista da China, “apenas” para garantir uma maior abertura do mercado chinês ao Facebook. Seja como for, a história de Careless People também não acaba aqui, já que a Meta (proprietária do Facebook), além de denunciar aquilo que considera as “mentiras” da autora, interpôs uma acção legal que a impediu de cumprir a habitual digressão promocional do livro.
Resta recordar a origem do título — à letra “pessoas descuidadas”, embora arrastando também as sugestões de superioridade, indiferença e manipulação. A expressão provém de O Grande Gatsby (1925), de F. Scott Fitzgerald, e surge no parágrafo que serve de epígrafe ao livro: “Tom e Daisy eram pessoas descuidadas — esmagavam as coisas e as criaturas, e depois retiravam-se para o seu dinheiro ou a sua imensa indiferença, ou o que quer que fosse que os mantinha unidos, deixando os outros a limpar a confusão que tinham gerado...”
>>> They were careless people, Tom and Daisy—they smashed up things and creatures and then retreated back into their money or their vast carelessness, or whatever it was that kept them together, and let other people clean up the mess they had made…
F. SCOTT FITZGERALD