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Caçadores na Neve (1565), de Bruegel, o Velho: uma pintura que Kiarostami reinventa através da manipulação digital |
Deixou de ser uma presença significativa no mercado, mas o DVD não desapareceu. Agora, uma edição muito especial traz-nos os filmes póstumos de dois autores que marcaram de forma decisiva a história do cinema nas últimas décadas: o iraniano Abbas Kiarostami e o francês Jean-Luc Godard —˜este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 março).
Para muitos responsáveis pelos circuitos do mercado audiovisual, o DVD acabou — passámos a viver na idade das plataformas e afins. Se olharmos em redor, não há dúvida que alguma razão lhes assiste, mas convenhamos que as notícias da morte do DVD são um pouco exageradas... Observemos, pelo menos, as excepções que vão resistindo. Exemplo? Esse pequeno grande acontecimento que é a edição em DVD, com chancela da Midas Filmes, de dois filmes póstumos com assinatura do iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016) e do francês Jean-Luc Godard (1930-2022).
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AK + JLG |
O cinema que aqui reencontramos é uma arte que afirma as suas especificidades, ao mesmo tempo que mantém um diálogo vivo sobre os seus próprios limites materiais e espirituais. No caso do cineasta iraniano, tal postura criativa é tanto mais importante quanto 24 Frames integra, com contagiante alegria, aquilo que, por certo, muitos espectadores não associam ao seu trabalho. A saber: a manipulação digital.
Kiarostami define o seu projecto a partir de uma curiosa afirmação: “Notei muitas vezes que não somos capazes de olhar para o que temos à nossa frente, a não ser que esteja dentro de um enquadramento.” Que é, então, esse enquadramento, designado pela palavra inglesa frame? Pois bem, é aquilo que nos propõe uma “fatia” do mundo que se oferece à nossa contemplação, eventualmente à nossa interpretação crítica.
E que faz Kiarostami com tais pressupostos? Começa por nos mostrar imagens de um célebre quadro (Caçadores na Neve, pintado por Bruegel, o Velho, em 1565) e, depois, fotografias várias de cenas que podem ir de uma paisagem vista a partir do interior de um automóvel até um grupo anónimo a contemplar a Torre Eiffel. A pouco e pouco, como se fossem discretos incidentes poéticos, algo nas imagens fixas começa a mover-se: o fumo de uma chaminé, os pássaros que assomam a uma janela, a neve que não pára de cair...
Redescobrimos o olhar realista de Kiarostami seduzido por um aparato técnico que lhe permite “adivinhar” o movimento que as imagens fixas sugerem e, num certo sentido, já contêm. No caso de Filme Anúncio do Filme “Drôles de Guerres”, a proposta é bem diferente, quanto mais não seja porque é mesmo um trailer (com 20 minutos de duração) para um filme que nunca se concretizou.
Os resultados são indissociáveis do labor de Fabrice Aragno, colaborador de longa data de Godard (que apresentou uma exposição sobre a sua obra na edição de 2023 do LEFFEST, sendo também um dos responsáveis de uma outra exposição dedicada a Godard, patente na Casa do Cinema Manoel de Oliveira até 15 de junho). Trata-se de regressar à dimensão artesanal do universo do autor de Pedro, o Louco (1965) e Eu Vos Saúdo, Maria (1985), dando a ver imagens, palavras e frases que lhe serviam como verdadeiros argumentos. Como o título sugere, em foco estariam as convulsões bélicas do mundo contemporâneo, afinal transversais a toda a filmografia godardiana e à sua pulsação, tão mal reconhecida, de genuíno humanismo.
Vistos ou revistos em DVD, os trabalhos de Kiarostami e Godard são também “mensageiros” de uma verdade que importa não escamotear. Assim, podemos e devemos não minimizar os valores da nossa relação com os filmes na clássica sala escura — essa é, de facto, uma experiência insubstituível. Ao mesmo tempo, não faz sentido aceitarmos a versão preguiçosa segundo a qual nos tornámos apenas consumidores de plataformas.
Em diversos mercados, o DVD continua a ser uma fonte importante, ainda que minoritária, de conhecimento do cinema, em particular das suas memórias clássicas, com edições que desapareceram do mercado português, incluindo a variante tecnicamente mais avançada do Blu-ray. Porquê? Em grande parte, sejamos claros, porque a prática de preços exorbitantes por alguns agentes do mercado fez com que o consumidor rapidamente se apercebesse de uma realidade rudimentar: era mais barato encomendar um Blu-ray do estrangeiro do que comprá-lo numa loja portuguesa... Enfim, as heranças de Kiarostami e Godard garantem-nos que nem tudo está perdido.