sexta-feira, novembro 25, 2022

António da Cunha Telles, in memoriam

[ DN ]

Para lá da escrita de um obituário de António da Cunha Telles — falecido no dia 23, em Lisboa, contava 87 anos —, permito-me, num registo mais pessoal, citar um período especificamente profissional da minha relação com o autor de O Cerco (1970).
Assim, tendo trabalhado como seu assistente no filme Continuar a Viver (1977), guardo desse tempo de filmagens com os pescadores da Meia Praia, em Lagos, uma memória de muitos contrastes, entre perplexidade e felicidade, de alguma maneira reveladora do tempo original que estávamos a viver — não apenas eu, como é óbvio, não apenas a equipa do filme, mas toda a sociedade portuguesa.
Valerá a pena recordar que, de forma mais ou menos programática, se tratava de relançar toda uma ideia de cinema (português, antes do mais), indo filmar o povo e, em particular, os sinais concretos de uma nova história, ou de um novo capítulo histórico, aberto com o dia 25 de abril de 1974. Concretizando: Continuar a Viver é uma crónica documental sobre a actividade do SAAL naquele contexto — ou seja, o Serviço de Apoio Ambulatório Local, criado, precisamente, para tentar resolver os problemas habitacionais das populações mais desfavorecidas.
Reflectindo as singularidades daqueles sinais, a canção Os Índios da Meia Praia, composta e interpretada por José Afonso para a banda sonora do filme, ficou, para mim, como um espelho modelar desse tão peculiar estado das coisas.


É bem verdade que esse impulso "popular" (as aspas pretendem reflectir as muitas ambiguidades e incertezas do processo que vivemos, dentro e fora do cinema) gerou e, de alguma maneira, legitimou as experiências mais variadas, das mais pensadas às meramente circunstanciais, estas últimas por vezes cedendo a uma demagogia política e, sobretudo, moralista que as décadas que se seguiram nem sempre souberam dissipar. Mas não é menos verdade que foram tempos empolgantes, de infinita discussão do que poderia fazer sentido num cinema "colado" às vidas concretas deste ou daquele grupo de portugueses.
Com o passar dos anos, Continuar a Viver foi-se inscrevendo na minha memória mais íntima (e, por isso mesmo, de partilha menos fácil, ou até menos desejada) como um objecto sintomático de toda uma conjuntura em que, de uma maneira ou de outra, todos os cidadãos foram desafiados a pensar ou repensar a sua pertença a um país.
Este é, para mim, um filme de certezas e incertezas, gestos racionais e momentos instintivos, cuja agilidade face à novidade do que estava a acontecer lhe confere uma paradoxal fragilidade: tratava-se de filmar o presente (ou, é caso para dizer: continuar a filmar) com um empenho cinematográfico tecido de hesitação e ousadia. Recordo essa fragilidade com imensa ternura pelo António e uma profunda gratidão pela possibilidade que ele me deu de, a seu lado, poder lidar com a avalanche da nossa história colectiva.